Todo mundo pensa que eu
sou louco. Talvez até você, quem diria... Eu estudei, tá? Estudei na
Faculdade de Letras da UFMG. Fiz o vestibular e passei. Não sou como
aquele não sei quem, lá de perto de casa, que não passava
nunca.
Eu sabia o que era seno,
co-seno, prótons, amorfo, contração da preposição "em" com o artigo
definido masculino singular "o". Quem vai saber uma coisa dessa? Aposto
que todo mundo que está passando nesta rua não sabe. Um louco saberia
isso? Aquele cara que ficou me enchendo o saco durante toda a noite de
ontem saberia o que é amorfo?
Eu cheguei e ele já estava
lá. Tinha espalhado uns papelões pelo chão, deitou em cima e ainda se
cobriu com um cobertor fedorento de bosta. Quando eu reclamei, ele, que
já estava com ciúmes da sua "casa", começou a falar. Você viu tudo, não
viu? Eu não fiz nada, só fiquei agachado batendo com os punhos na cabeça
e me lembrando do Sôtião.
Ô velho filho da puta
aquele! Quando ele ficava falando, falando, eu sentava na cama com as
pernas encolhidas, joelhos colados ao peito e batia os punhos na cabeça,
como fiz ontem. Um dia, quando ele parou de falar, eu fiquei lá, sentado
na cama, com as pernas encolhidas, e de repente uma gata pulou na janela
e me olhou dentro do quarto com um olhar que jamais esquecerei. Parecia
estar me acusando de alguma coisa, não sei...Hoje eu estou vendo a gata
a todo momento, e acho que é por causa do falatório de
ontem.
O Sôtião bebia, enchia o
meu saco e enchia o saco da mãe também. Eu entrava no quarto, trancava a
porta, as janelas e ficava ouvindo disco de rock no último volume.
Quando a Regina queria fugir do pai e da mãe, também entrava no quarto
para ouvir música comigo. Deitava no chão e eu fingia que não estava nem
aí, mas ficava olhando disfarçado para as pernas dela. Eu era muito
doido nessa época: ficava olhando as pernas da minha irmã, depois ia
para o banheiro bater punheta.
Quando entrei para a
faculdade, conheci um tal de... que usava uma jaqueta do exército
americano... não sei mais o nome dele. Todos os dias, depois da aula, a
gente tomava Vodka com Fanta num boteco na esquina. Ele tinha uns amigos
que apareciam de vez em quando com Gardenal, Mandrix, até maconha, e era
um barato. Nesses dias, quando eu chegava em casa, o Sôtião podia falar
à vontade que eu, em vez de ouvir a sua voz, ouvia era o canto de
passarinhos. Só era chato quando eu via a gata. Eu não sei como era
possível, mas mesmo com o quarto fechado ela aparecia e ficava me
olhando com aquele olhar acusatório.
Daí eu resolvi me mudar
para o Rio. Todo mundo sempre falava que era outro mundo, que todas as
mulheres davam e que a praia era a maior orgia. No fundo, o que eu
queria mesmo era parar de olhar para as pernas da minha irmã, e
principalmente, ficar livre do Sôtião. Tranquei a matrícula na
faculdade, porque pensava em ficar somente por algum tempo, e deixei um
bilhete para a mãe dizendo que tiraria férias daquela casa por alguns
meses. Garanto que ela não deve ter gostado nem um pouco da minha
ausência, pois o Sôtião deve ter transferido toda a sua ira para ela e
para a Regina.
Ah, Regina... Será que ela
ainda tem aquelas pernas?
Quando cheguei aqui no
Rio, fui morar na Praça da Bandeira, numa vaga, e todos os dias pegava o
ônibus e vinha para Copacabana. Ficava zanzando na praia, tentando fazer
amigos para me mudar para cá, e confesso que foi difícil. O dinheiro que
eu roubara do pai estava acabando e eu não tinha como pagar o aluguel do
próximo mês. Às vezes dormia nos bancos do calçadão de Copacabana, mas
sentia muito frio de madrugada. Quando eu já estava começando a descer
pela porta de trás dos ônibus, por falta de dinheiro, conheci dois
Hippies que dividiam um apartamento na Miguel Lemos com um cara mais
velho. Eles faziam artesanato para vender pela orla marítima e eu
comecei a ajudá-los, em troca de amizade.Com o passar do tempo eles me
chamaram para morar no seu apartamento, e nessa mesma noite eu peguei as
minhas coisas na Praça da Bandeira e fui dormir na parte de cima de um
beliche, numa Kitineti de Copacabana.
Os Hippies, a princípio,
não me contaram, porém, depois de um certo tempo me disseram que o cara
mais velho, que pagava a maior parte do aluguel e tinha o apartamento em
seu nome era veado e cobrava uma trepada por semana de cada um. Eu tive
que entrar na trepada semanal, e toda vez que isso acontecia, via a gata
em um canto do quarto, me olhando, me acusando.
Isso durou até o dia em
que um deles foi visto pelo
cara mais velho, na praia, com uma garota. Eu, na época, achei uma
atitude muito infantil a dele, de pensar que nós três viveríamos única e
exclusivamente em função da sua pederastia. Ele dramatizou, chorou, nos
expulsou jogando roupas ainda nos cabides e sapatos escada abaixo. Nós
descemos o prédio catando as coisa, rindo bastante, e sem outra opção,
fomos os três para a Galeria Alaska e passamos a morar lá, num banco em
frente ao bar Rio Jerez.
Um dos Hippies era o
Gaúcho e o outro, o Louro. Era tudo o que eu sabia deles. Depois de um
certo tempo, um dos dois, eu acho que foi o Louro, resolveu voltar para
Porto Alegre e eu continuei morando com o outro na
praia.
Um dia, apareceram por lá
duas baianas com sandálias de couro amarradas até quase as coxas e os
pés muito sujos. Estavam deslumbradas com o Rio e achavam que morar na
rua era a aventura mais fascinante que poderiam contar aos amigos quando
voltassem. Eram muito ligadas aos amigos e à mãe, e quase que
diariamente iam à Praça General Osório telefonar para
Salvador.
O Gaúcho ficou com a
mulata maior e mais gostosa e eu fiquei com a
magrinha.
Pára de ficar se coçando,
senão eu paro de contar!
A magrinha era feia,
coitada, e quando ficava muito tempo sem comer, tinha mau hálito. Apesar
disso ela me chamava de "Meu doce" e era muito carinhosa. A gente sempre
transava na praia e uma vez aconteceu uma coisa triste, porém engraçada.
Pensa: o meu pau estava sujo de areia e eu enfiei na buceta dela. Nós
não vimos porque estávamos há um tempão; eu com o dedo lá dentro e ela
pegando no meu pau e a gente se beijando, aproveitando que não tinha
ninguém perto para encher o saco. Na hora ela dizia "ai" de vez em
quando, e eu também sentia alguma coisa me machucando, mas só depois que
gozei e saí de cima é que dei pela coisa. O meu pau foi amolecendo e
ficando mais ou menos como se alguém tivesse passado nele um ralador de
queijo. Ficou todo marcado e com vários fiozinhos de
sangue.
A magrinha, que eu também
não sei o nome, foi se lavar na água salgada e começou a sentir dor.
Passou a noite inteira num banco da praia com as pernas cruzadas
apertando bem a buceta e gemendo de dor. De manhã, quando a sua amiga
chegou não sei de onde, a levou para se lavar no banheiro do Lucas que
tinha um bidê com água forte.
Um dia a polícia chegou
pedindo documentos, só para amedrontar. Eu acho que foi para amedrontar
porque eu já não tinha documentos há muito tempo e eles não me levaram,
mas ameaçaram bastante, dizendo que não queriam mais nos ver alí. As baianas, com medo das
ameaças, resolveram voltar para Salvador, e nós fomos levá-las até a
rodoviária. Na volta, compramos uma garrafa de cachaça e tomamos
todinha, fingindo que estávamos apaixonados.
Quando a gente saía, como
dessa vez em que fomos à rodoviária, guardávamos nossas coisas numa
manilha que desembocava a água dos bueiros na praia. Quebramos a parte
de cima da manilha, que era bem larga, e fizemos um quadrado de pedras
entre a manilha e a areia, como se fosse um bagageiro de um ônibus. O
nosso bagageiro durou até o dia em que resolvemos vender bijuterias na
Cinelândia. O tempo estava nublado e o movimento muito fraco em
Copacabana. Guardamos nossas coisas na manilha e quando estávamos no
centro da cidade, animados com o sucesso das vendas, caiu um temporal de
parar o trânsito. Demoramos horas para chegar em "casa", e quando fomos
até a manilha pegar as coisas, encontramos um grande buraco, provocado
pela força da água, que levou manilha com areia e tudo para o fundo do
mar.
O Gaúcho vendo aquilo,
começou a chorar e eu a rir. As poucas roupas, as ferramentas e os
materiais de bijuteria; tudo para o mar. O que havia restado era o
dinheiro das vendas da cidade e um pouco de brincos e
colares.
Depois de reclamar quase a
noite toda o Gaúcho resolveu partir para São Paulo no dia seguinte, onde
iria se encontrar com um
tio. Pegou o dinheiro das vendas na Cinelândia e eu fiquei com o resto
das coisas. Era tudo o que me restava: uns poucos brincos e pulseiras,
uma calça suja de barro e uma camisa ensebada.
O Gaúcho me aconselhou a
voltar para casa e só de pensar nisso fiquei arrepiado, como estou
agora, olha... Você pensa que eu poderia voltar e agüentar tudo aquilo
novamente? Só se eu fosse maluco!
Consegui vender as
bijuterias e fui vivendo com o dinheiro. De repente me deu uma saudade
louca da baiana magrinha, que me chamava de "Meu doce". Eu acho que
realmente fiquei apaixonado por ela, e se não fiquei, pensava que
estava, como uma forma de arrumar forças para continuar vivendo. Tentava
desenhar o seu rosto na areia e quando a maré estava baixa, e a onda
passava vagarosamente sobre o desenho, costumava vê-la
sorrindo.
Quando o dinheiro acabou,
tentei fazer amizade com vários outros caras que vendiam bijuterias, mas
ninguém me dava atenção. Achei que esse desprezo poderia ser porque eu
estava muito sujo, e resolvi tomar um banho. Peguei um ônibus e fui para o Aterro do Flamengo. Já havia
visto várias pessoas tomando banho em um chafariz do aterro, nas minhas
idas e vindas para a Praça da Bandeira
A água não era muito limpa
e eu tirei toda a roupa, fiquei de cueca, peguei uns restos de sabonetes
no chão, tomei um banho e lavei a calça e a camisa. Era incrível como
tinha restos de sabonetes no chão. Tinha até pedaços quase inteiros que,
depois do banho, se tornavam inúteis para os seus donos. Geralmente as
pessoas que tomavam banho ali eram pessoas da rua e não costumavam andar
com um sabonete no bolso durante um mês, até o próximo
banho.
Estiquei a roupa no
gramado e fiquei conversando com dois pivetes. Um tinha um corte já cicatrizado no
supercílio e o outro tinha a cabeça raspada, cheia de marcas de cortes
antigos, já cicatrizados. Um deles tirou um saco plástico do bolso com
um pouco de cola de sapateiro dentro, enfiou o nariz e a boca dentro do
saco, fechando os lados com as mãos e ficou inspirando rapidamente o ar.
Depois passou para o outro e este me passou o saco. Eu fiz o mesmo e
depois de alguns segundos fiquei tonto. Fiquei tonto como se fica se
você inspirar e espirar rapidamente sem cola nem nada. Eu acho que
aquela cola já devia ter sido muito usada, mas mesmo assim, eles
deitaram na grama e viram, entre uma risada e outra, vários monstros nas
nuvens.
Enquanto isso, eu tirei
bem depressa a cueca, vesti a calça que já estava seca e lavei a cueca.
Depois repeti a mesma coisa para colocar a cueca molhada sob a calça.
Vesti a camisa, joguei as meias rasgadas fora, calcei o tênis e fui
passear no Aterro. Estava me sentindo bem, como se fosse outra pessoa, e
cheguei a puxar assunto com uns caras na Praia do Flamengo, recebendo em
troca uma certa má vontade no tratamento.
Mais para os lados de
Botafogo, numas pedras que margeiam a orla, parei para ver algumas
pessoas pegando mariscos. Em uma lata já preta por fora, sob uma
fogueira, eles ferviam água onde jogavam os mariscos, e depois de alguns
minutos, pegavam para comer. Havia várias garrafas de cachaça vazias
espalhadas pelo lugar e várias outras cheias encostadas em uma pedra. As
pessoas que estavam ali viviam de catar papel e ferro velho para vender,
e com o dinheiro, só compravam cachaça e cigarro porque comida tinham
com fartura. Eram todos inchados e esfolados por tombos provocados pela
bebida.
Pedi um pouco de cachaça e
eles negaram. Pedi um marisco e eles me deram. Então eu peguei as
garrafas vazias jogadas pelo chão e comecei a jogar o resto de todas
elas em uma outra. Eles ficaram me olhando e eu consegui com isso
aproximadamente um quarto da garrafa. Ofereci um pouco a eles e eles
começaram a rir, me chamando para comer mais
mariscos.
Fiquei pelo Aterro não sei
quantos meses, sempre aquecido pela fogueira que esquentava a lata e
pela cachaça. Segundo meus companheiros, eu estava ficando inchado como
eles. Isso durou até quando começaram a aparecer por lá uns caras que
preferiam roubar na praia para comprar cachaça do que catar
papel.
Como que um
ex-universitário poderia ser preso por pequenos furtos na praia?, eu
pensei, e resolvi voltar para Copacabana.
Quando voltei, parei em
frente ao Banerj do Posto Seis e me olhei no espelho durante muito
tempo. Estava cabeludo, barbudo, imundo. O tênis furado, sem cadarço, a
calça arregaçada e uma grande ferida na perna esquerda, conseqüência da
queda de uma pedra quando catava mariscos. Confesso que fiquei
horrorizado me vendo daquele jeito. E se a baiana me visse assim? Ela
disse que voltaria e nunca voltou. Foi a única mulher que eu tive no
Rio, e apesar da areia, vivemos bons momentos juntos. Vê se pode: "Meu
doce". Eu já fui o doce de alguém. Quando eu vejo essas mulheres
passando por aqui, me lembro dela, que tinha mau hálito mas era muito
melhor do que todas elas.
Joguei o tênis fora,
abaixei as calças, lavei o cabelo e a barba na mangueira de um porteiro
que regava o jardim de um prédio na Rua Conselheiro Lafayete e procurei,
até encontrar, na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, uma fita para
colocar na cabeça. Queria mudar o visual e já que estava sujo, pelo
menos com uma fita na cabeça pareceria Hippie e não
mendigo.
As pessoas começaram a
olhar para mim e isso me deixou muito contente. Finalmente as
pessoas passaram a prestar
atenção em mim. Eu estava me sentindo o doce de todo mundo. Cheguei a
achar que elas até gostavam de mim.
Andava devagar, cabeça
erguida, olhar superior, e quando alguém me olhava, eu sorria e as
pessoas sorriam de volta. Me recusava a pedir algo a elas, e nessa
época, passei a andar todos os dias nas feiras livres para comer frutas
podres que sobravam das barracas. Disputava no tapa com os favelados dos
morros do Cantagalo, Pavão e Pavãozinho a lavagem que iriam levar para
os porcos.
Quando já não agüentava
mais comer frutas e estava magro como um palito, resolvi comer algo mais
consistente: descobri, sem querer, que as pessoas, a maioria delas que
comiam no Gordon da Praça General Osório, deixavam restos de
hamburgueres, batatas fritas, refrigerantes e várias outras coisas nas
bandejas, em cima das mesas da calçada. Eu ficava parado atrás de um
poste, como se não quisesse nada. Quando alguém se levantava da mesa, eu
corria lá, pegava tudo que havia sobrado e saia andando depressa sem
olhar para trás.
Recuperei novamente as
forças, até que puseram um segurança para controlar a invasão de
favelados que, seguindo o meu rastro, atacavam as pessoas, antes mesmo
delas acabarem de comer, e várias vezes eu vi crianças passarem
correndo, batendo a mão no sanduíche que o freguês levava à boca,
deixando-o petrificado naquela posição por alguns
instantes.
Parei de comer sanduíches
e me esqueci também da feira. Naquela época, cheguei a ficar uns quatro
dias sem comer nada. Pedia de vez em quando um copo d'água nos bares, e
depois do quarto dia de fome, e uma grande crise de consciência, resolvi
pedir uns trocados. Mandei o seno, o co-seno, o amorfo para a puta que o
pariu e fui pedir uns trocados.
Já pensou se a mãe me
visse daquela maneira? Já pensou, os três: a mãe, o pai e a gostosa da
Regina sentados num bar de Copacabana ao entardecer? Os três, o marido
da Regina e um netinho do pai, de uns três anos? Eu passando devagar,
com um chapéu na mão, e o pai dizendo: "Nós não nos conhecemos?". E a
Regina: "É ele, pai, agora que eu estou
reconhecendo".
Tinha que acontecer isto!
Se acontecesse seria como se eu estivesse dando uma esporrada na cara
dos três. Da mãe não, coitada. Na mãe, seriam só uns
respingos.
Passei a pedir esmola, mas
não fazia cara de vítima, nem de sofredor. Pedia assim: "Me arruma mil
pratas aí!". Às vezes alguém dizia: "Só tem duzentos, serve?", e eu
pegava. Já dava para o pão. Raramente alguém me dava os mil, e quando
alguém dizia: "Eu não tenho", eu pensava: "Enfia no cu", e quando alguém
dizia: "Tô duro", eu
pensava: "É mentira", e saía rindo, sempre de cabeça erguida e
aparentando felicidade.
Queria mostrar a todos que
eu estava ali por minha livre e espontânea vontade. Queria que todos
vissem na minha figura de Hippie, um estudante de letras da
U.F.M.G.
Comecei a almoçar arroz,
feijão e carne num bar na Rua Francisco Sá e passei a me encher de
fitas: coloquei mais duas na cabeça, de cores diferentes, uma numa
perna, outra na outra, nos braços, e tudo que eu achava que pudesse me
enfeitar, colocava.
As pessoas começaram a me
conhecer e algumas conversavam comigo. Algumas já me davam dinheiro
antes mesmo que eu lhes pedisse, e como eu estava com a vida arranjada,
com um tipo de emprego garantido, arrumei com um senhor que sempre me
cumprimentava cordialmente, algumas folhas de papel de computador usadas
e um lápis para escrever no verso.
Eu não estudei letras?
Então, tinha que escrever, não é mesmo?
Sentava todas as tardes,
depois do almoço, na porta de uma loja ou de um Banco qualquer em
Copacabana ou Ipanema e ficava escrevendo. Quando via que alguém passava
olhando, tentando ler alguma coisa, fazia cara de quem estava
compenetradíssimo. Me sentia um verdadeiro intelectual. Começava a
escrever sobre qualquer assunto e sempre acabava na gata, na mãe, no pai
ou nas pernas da Regina. Xingava, xingava todos eles e quanto mais os
mandava tomar no cu, mais me lembrava deles. Às vezes tinham folhas e
mais folhas escritas, por exemplo: "A gata pulou na janela", ou : "Mãe,
fala pro pai parar".
Um dia, comecei a escrever sobre a
linha. Descobri que tudo tem uma linha. Sabia o que era, mas não sabia
explicar. O raciocínio tem uma linha. Você vai seguindo naquela linha,
de repente você sai da linha e pega outro caminho, deixando para voltar
depois, e desse caminho você vai para outro, depois volta para a linha.
Você pode ir para vários caminhos e depois voltar para a linha ou fazer
do último caminho a linha principal.
Escrevi vários tratados
sobre a linha principal e as secundárias. Escrevia até andando pela rua
e ia deixando as folhas para trás. Queria entender o raciocínio e queria
que o raciocínio também entendesse a minha lógica.
Comecei a sentir uma
vontade desesperada de conversar com alguém sobre isso. Ia a pé quase
todas as noites para a porta do Planetário da Gávea, onde as pessoas
costumavam ficar filosofando, não sei o que, até tarde da noite, e não
consegui ninguém para conversar.
Tentava puxar assunto, mas
as pessoas me olhavam e, na maioria das vezes, continuavam seus assuntos
como se eu não estivesse ali. Cheguei a tirar as fitas e nada! Ninguém
me ouvia. Passei a falar sem ser ouvido. Chegava numa rodinha e começava
a falar sobre a linha, e quando eu saía da minha linha e tentava voltar,
não conseguia, fazendo uma grande confusão na cabeça. Ficava com várias
linhas na cabeça, todas se cruzando, e quando não tinha mais jeito,
sentava no chão e ficava batendo os punhos na cabeça até
dormir.
Foi mais difícil sair
disso do que um viciado sair do pico na veia. Não podendo continuar daquele jeito,
comecei a beber. Todo o dinheiro que ganhava gastava com cachaça. Quando
me sentia um pouco lúcido, a ponto das linhas começarem a se cruzar
novamente na minha cabeça, tomava outra garrafa, até voltar a ficar
inchado como ficara no tempo do Aterro.
Dormia de qualquer maneira
pela rua e estava que era um trapo só. O dinheiro diminuiu. As pessoas,
quando me viram bêbado, pararam de me sustentar. "Para comprar cachaça,
também é demais", diziam elas. Eu ia com a garrafa debaixo do braço e
entre um gole e outro, cantava em voz alta: "A linha não me pega... A
linha não me pega...". Nessa época eu nem me enfeitava
mais.
Um dia, acordei já com um
grande movimento na rua. Estava todo mijado e cagado, com a garrafa
vazia ao meu lado. Quando abri o olho, notei que uma velhinha me olhava
e resmungava que era um absurdo aquela cena: um homem forte ali naquele
estado miserável, bêbado, inútil.
Eu me senti muito mal
naquela hora. Foi como um sonho, daqueles que você se acha nu, de
repente, no meio de uma rua movimentada. O pior é que nem as linhas me
vieram à cabeça para me tirar daquela ridícula situação. A única coisa
que consegui falar, sabe o que foi? Você não vai acreditar: "Me leva pra
tomar um banho?". Eu ia continuar a dizer: "Me carrega no colo, me faz
um carinho, me põe pra dormir", mas me contive a
tempo.
A velha ficou parada um
longo tempo me olhando, depois disse: "Anda, vem!", e saiu andando,
pisando duro. Eu fui atrás, morrendo de vergonha da calça mijada e logo
na frente, no mesmo quarteirão, entramos em um prédio. Ela me disse para
esperar na garagem e ficou conversando com o porteiro. Depois subiu e o
porteiro disse: "Ah, é você?... Eu já te conheço da rua. Como você está
horrível, nem fita colorida tem mais. Vem, vem tomar um
banho".
O banheiro era ao lado do
incinerador de lixo, num lugar muito apertado e cheio de baratas. O
porteiro me deu um pedaço de sabão de lavar roupa e tirou do banheiro um
sabonete, que provavelmente era seu. O chuveiro era largo, de lata, a
água fria, e eu fiquei horas lá embaixo. Me ensaboei várias vezes e
antes mesmo de pensar que teria que vestir novamente aquela roupa mijada
e cagada, o porteiro chegou com uma calça e uma camisa para eu
experimentar. Disse que fora a velha que pegara de um de seus
netos.
Olha, cara... A roupa era
bonita pra caralho! Uma camisa toda florida e uma calça amarela, de
elástico na cintura.
Depois ela mesma trouxe um
par de tênis bem grande, mas não serviu no meu pé inchado. O porteiro
disse que, se eu parasse de tomar cachaça me deixaria tomar banho no
prédio de vez em quando. Saí de lá me sentindo leve como um pássaro. Fui
direto para uma confecção na Rua Figueiredo Magalhães e peguei vários
retalhos de malha de cores diferentes. As pessoas que trabalhavam lá já
me conheciam e me ajudaram a amarrar as fitas na cabeça, no braço,
enfim, por todo o corpo.
Voltei a caminhar com a
cabeça erguida e a sorrir para todos. Finalmente a minha hora havia
chegado. Eu tinha virado o palhaço mais popular de Copacabana. Comer já
não era problema e até banho eu já tinha onde
tomar.
Atingi a perfeição, quando
a dona de um salão de beleza da Rua Toneleros teve a brilhante idéia de
me convidar para tingir o cabelo. Na primeira vez eu pedi para que
tingisse de azul claro, como forma de prestar uma homenagem à velha que
tinha o cabelo tingido assim.
Quando saí pela rua o
sucesso foi total. Arrumei uma fita rosa, quase fosforescente, coloquei
na cabeça, e quando me vi no espelho, confesso que fiquei apaixonado por
mim. Foi a primeira vez que eu senti orgulho da minha
pessoa.
A velha sempre deixava
roupas do seu neto para mim. No dia que o porteiro contou que ela havia
morrido, eu chorei como se tivesse perdido uma pessoa da família. Uma
pessoa de uma nova família e não daquelas merdas que você já ouviu
falar. Só conversei com ela aquela vez mas nunca me
esqueci.
Depois o porteiro
continuou pedindo roupas velhas aos moradores para me dar, mas nunca
conseguiu uma camisa florida e uma calça amarela como aquela. Aquele dia
foi muito especial, quase como o dia em que te encontrei: "Finalmente
alguém para me ouvir", pensei.
Você tinha engolido um
osso inteiro e estava tendo uma espécie de convulsão na porta do Barril
1800. Abanava o rabo,
contraindo o corpo, mas não conseguia expelir nada, lembra? Eu fiquei
olhando durante um tempão, até você parar com aqueles ataques. Pensei
até mesmo em amarrar uma das minhas fitas no seu pescoço, e com outra,
fazer uma espécie de guia para te trazer comigo. Estava com medo de você
caminhar para o outro lado, mas você me olhou com esse olhar carente e
me seguiu assim que eu comecei a andar. Veio abanando o rabo e nós
estamos juntos até hoje. Você só estranha quando pinto o cabelo de
verde, não é mesmo? Tem que acostumar, já te falei. Eu sou um homem
livre. Não vou me privar de um prazer por mero capricho
seu.
Depois tem o seguinte:
Qualquer dia vou tirar as fitas do seu pescoço e levá-lo lá na Toneleros
para te pintar de verde.