©nerino campos

 

 

Liberdade Ainda que Tardia

 

 

Um cachorro preto, pequeno, manco, sem um pedaço do rabo, tentava atravessar a Praça General Isidoro abocanhando um pedaço de sebo, ainda grudado ao perônio traseiro esquerdo de um touro, que até poucas horas antes era chamado de Valente pelo pessoal da Fazenda Santa Cecília.

É claro que o Valente não acompanhava o perônio, ali na boca do cachorrinho manco. Naquele momento o Valente já havia sido assassinado, esquartejado, destrinchado, e seu sangue na mesa do açougue e nas mãos do açougueiro não era desagradável aos olhos dos que haviam se acostumado, desde criança, a aceitar com naturalidade, por necessidade de sobrevivência, o assassinato de animais.

Sentada na pontinha de um banco de mármore da praça, tentando se proteger de uma pequena poça de água amarelada formada na concavidade do banco, uma senhora de oitenta e três anos, de nome Dinorá, observava o cachorrinho. Ela sentia pena do cachorro, do esforço que ele fazia para carregar aquele enorme osso, e imaginava a luta que ele deveria travar para sobreviver; manco, sem um pedaço do rabo, feio.

Os pensamentos de D. Dinorá eram limitados, chegando até  este ponto. Se ela fosse um pouco mais sensível e abrangente, estaria pensando que: se o cachorrinho fosse um Poodle ou um Collie perdido, manco, sem um pedaço do rabo, estaria transmitindo compaixão, e certamente alguém se prontificaria a ajudá-lo, dando-lhe abrigo, comida, e tentando encontrar-lhe o dono. Se fosse um cachorro sem dono, fatalmente alguém o adotaria, como adotam e ajudam crianças bonitas, se esquecendo das feias, esfarrapadas, que andam pela rua a procura de alimento.

O cachorrinho, cansado de carregar aquele osso, talvez mais pesado do que o seu próprio peso, colocou-o no chão e olhou para os lados, tentando encontrar algum possível inimigo que o fizesse pegá-lo novamente e seguir o seu caminho.

Antes de estar ali na praça, ao passar em frente ao Frigorífico São Jorge, o cachorrinho sentiu cheiro de carne  e parou, abanando o cotoco de rabo que ainda lhe restava, ansioso para que alguém o servisse. Sebastião Salgado, um dos açougueiros do frigorífico, foi até a uma enorme caixa onde se depositavam os ossos destrinchados, escolheu a dedo o perônio do Valente, por ser um osso pesado e grande, já com a intenção de causar dificuldades ao cachorrinho, e colocou-o na sua boca, ajudando-o, a princípio, a carregá-lo.

Um homem como Salgado, brincalhão, inconveniente, não daria um osso pequeno para um cachorro pequeno, nem daria um osso grande para um cachorro grande. Para os cachorros grandes ele dava um osso pequeno, e se divertia olhando o cachorro se engasgando com o osso atravessado na garganta. Para o cachorrinho manco ele deu o osso grande, e acabou conseguindo alcançar o seu objetivo, que foi o de causar-lhe o máximo de esforço e desespero na tentativa de carregá-lo.

D. Dinorá continuava olhando para o cachorrinho, e  seus pensamentos vagueavam entre a pequinês que tivera há mais de cinqüenta anos e o Rottweiler do seu neto, que latia do canil com tanta agressividade que chegava a cortar os lábios com os próprios dentes.

A pequinês fora criada com muito mimo. Usava fitinhas na cabeça e no inverno era vestida com roupinhas coloridas. Um dia a cachorrinha, não se sabe como, cruzou com algum cachorro vira-lata da rua; isto numa época em que qualquer relacionamento extraconjugal, ou de mulher solteira com um homem, era considerado um escândalo. A cachorrinha nunca saía de casa, e algum cachorro vira-lata, bem magro, talvez até parecido com aquele cachorrinho preto, manco, da praça, tenha entrado com facilidade pela grade de ferro do portão da garagem e tenha abusado de sua inocência. Foi o que D. Dinorá pensou ao  descobrir que algo de errado estava acontecendo com as tetas da cachorra, que começavam a crescer.

Com o passar do tempo, notando que a cachorra se comportava como se estivesse gostando de ter sido estuprada, saltitando pela casa e brincando de morder o pano de chão da cozinha, D. Dinorá começou a enxergá-la como uma prostituta. Sentia-se traída pela amizade da cachorrinha, e passou a tratá-la com muita agressividade. Não permitia mais que ela deitasse no sofá da sala, e às vezes, trancava-a na pequena área do tanque, deixando-a praticamente sem água e comida durante todo o dia.

Mesmo sentindo-se completamente só, sem a companhia da cachorrinha para comentar os acontecimentos do dia, D. Dinorá continuava irredutível na sua decisão de mantê-la  afastada da família, dos vizinhos e dos amigos. Nessa época D. Dinorá, ainda sem filhos, vivia  com o marido, escrivão da Polícia Civil, e este, irresponsável, geralmente saía do trabalho ao final do expediente, com os amigos, e passava em algum botequim para tomar cerveja antes de ir para casa. Quando chegava ela já havia dormido, e os dois só se encontravam aos domingos, ficando cada um calado no seu canto. O silêncio só era quebrado quando D. Dinorá, ao passar pela cachorrinha, que geralmente  brincava distraída com o pano de chão, dizia trincando os dentes: "Como se não bastasse um bêbado, agora também uma prostituta!..".

Um dia a cachorrinha dormia no sofá da sala, e D. Dinorá, ao vê-la, se aproximou pisando firme e deu-lhe um tapa tão violento que fez com que ela rolasse pelo tapete, caindo debaixo da mesinha de centro. D. Dinorá se aproximou para xingá-la, mas nesse momento sentiu um forte cheiro de gordura queimada vindo da cozinha e correu para apagar o fogo.

Quando voltou, mais ou menos duas horas após ter corrido para o fogão, encontrou a cachorrinha ainda deitada, na mesma posição, debaixo da mesa de centro, e ao seu redor, seis cachorrinhos, alguns pretos com manchas brancas, outros marrons, todos tentando encontrar uma teta para se alimentar. D. Dinorá chegou mais perto, tocando  a cachorrinha, e ao ver que ela não se movia,  virou-a, tentando acordá-la, porém constatou que os seus olhos estavam abertos, vidrados, e um sétimo cachorrinho, também imóvel, com a metade do corpo para fora de sua vagina, secretava um líquido amarelado da pequena boca.

D. Dinorá, aflita, sem saber como agir, não teve outra alternativa senão chamar a vizinha para ajudá-la. Não disse que dera um tapa na cachorrinha, e a vizinha, eficiente, ajudou-a a limpar a sala, embrulhando a cachorrinha e seu filhote entalado em um pano de prato. Depois desocuparam uma gaveta do armário, forraram com uma toalha velha e colocaram os seis filhotes lá dentro. Quando tudo estava arrumado, e o chão já limpo, as duas acertaram que os filhotes ficariam com a vizinha. D. Dinorá, apesar de sentir uma certa ternura por aquelas criaturas, não conseguiu aceitar a idéia de conviver com seis bastardos dentro de casa.

Hoje ela entendia melhor as coisas, e sabia que agira de maneira infantil. Olhando para aquele cachorrinho preto ali na praça, sentiu vontade de conversar novamente com a sua pequinês; assistir aos programar de televisão abraçada com ela, e dar-lhe o pano de chão da cozinha para que ela saísse correndo pela casa mordendo-o, movimentando a cabeça para um lado e para o outro, até se cansar e dormir no sofá da sala.

Como não apareceu nenhum inimigo, o cachorrinho preto arrastou o osso para perto de uma torneira, ligeiramente aberta, e ficou lambendo a água com muita dificuldade. Tentava pegar os pingos ainda no ar, e nervoso, passou a latir a cada vez que o pingo demorava a cair da torneira.

Um homem magro, alto, de meia idade, usando um terno um pouco largo e um enorme par de sapatos marrons, passou vagarosamente, procurando um lugar para sentar-se.

Em um dos bancos havia um carteiro, no outro, um casal de namorados, e num terceiro, dois estudantes, praticamente deitados, riam bastante das bobagens que diziam.

O homem se aproximou do banco onde D. Dinorá se encontrava e quando se preparava para sentar-se, ela o alertou sobre a pequena poça d’água formada na concavidade do banco. O homem agradeceu a gentileza e pegou um lenço para secá-lo. Passou o lenço no banco e o lenço ficou encharcado. O banco também continuou molhado, e o homem, tímido, fingindo agir de maneira natural, dobrou o lenço, que pingava sobre os seus pés, colocou-o no bolso traseiro da calça, pediu licença e sentou-se, como se o banco estivesse seco. D. Dinorá olhava para a frente, fingindo não notar a aflição daquele homem. Ela também estava aflita, mas continuava sentada, olhando para a frente, como se tudo aquilo não estivesse acontecendo ao seu redor.

Seria tão mais fácil se todos agissem de maneira natural:

"Meu senhor, o banco continua molhado".

"É, vou torcer o lenço novamente e passá-lo, até que o banco fique seco e eu possa sentar-me".

"Eu tenho aqui uma caixa de lenços de papel, o senhor aceita alguns?".

"Absolutamente, minha senhora, muito obrigado. Guarde-os para as suas necessidades. Já está quase seco".

"Pronto, olha ali, só faltam aqueles pingos. Pode sentar-se. Agora não se molhará mais".

"Eu vou colocar o lenço aberto na grama. Daqui a pouco ele estará seco".

"É bom mesmo, senão ele poderá molhar a sua calça".

"E se isto acontecer, as pessoas acharão que eu... há... há... há...".

"Há... há... há... acharão que o senhor fez... há... há... há...".

"Xixi na calça...".

"Antes do senhor chegar eu estava olhando para aquele cachorrinho preto, manco, sem um pedaço do rabo".

"Qual?".

"Aquele, tentando tomar as gotas de água que caem da torneira".

"Ah, o pretinho".

"É, eu olhava para ele e pensava numa cachorrinha que tive há muitos e muitos anos. Ela ficou prenha e eu a tratei como uma putinha. Eu a criava como se fosse minha filha. Nessa época eu não tinha filhos e vivia muito só. O meu marido chegava tarde do trabalho. Ele era escrivão da Polícia Civil, e geralmente, após o expediente, saía com os colegas do serviço para tomar cerveja".

"E deixava a senhora em casa com a sua filhinha adotiva".

"É, eu ficava sozinha ouvindo radionovela, ou um programa chamado: 'Incrível, Fantástico, Extraordinário' — não é do seu tempo — onde o locutor contava histórias que, segundo ele, eram verdadeiras, e que me deixavam com os cabelos arrepiados de pavor. Eram histórias de mortos que voltavam, mãos pegando as pernas das pessoas, fantasmas acorrentados".

"Eu detesto histórias de terror".

"Eu também detesto, no entanto, nessa época, preferia ouvir histórias de terror a ouvir o silêncio da solidão. Nos momentos mais apavorantes, nas horas em que eu sentia mais medo, abraçava a minha cachorrinha e o seu calor me confortava, fazendo com que o medo fosse passando lentamente".

"Um dia a cachorrinha ficou grávida, e eu — olha só que coisa mais idiota —, comecei a enxergá-la como uma puta, e tomei ódio dela. Minha filha havia me traído. Meu marido — nunca contei isto para ninguém — me traía com outra, e a minha cachorrinha não poderia ter feito aquilo comigo. Foi o que eu pensei naquela época. Então eu passei a agredi-la, até matá-la depois de dar-lhe um forte tapa, apenas porque ela dormia no sofá da sala. Seus filhotes sobreviveram, e eu os dei para a vizinha. Ainda me lembro de que naquela noite rezei para todos os santos que conhecia, para que a vizinha não contasse nada a ninguém,  das desgraças da minha família. O certo é que a vizinha deve ter encarado tudo aquilo simplesmente como se encara uma cachorrinha parindo seis filhotinhos e meio, mas os meus problemas não permitiram que eu enxergasse a coisa dessa maneira. Para mim estava acontecendo alguma coisa errada na minha casa, e eu não queria, de jeito nenhum, que as pessoas ficassem sabendo".

"Mesmo sentindo este medo das pessoas e este ódio da putinha, a senhora sentiu a sua falta?".

"Claro que senti, como sinto até hoje. Senti mais a sua morte do que a morte do meu marido. Quando ele morreu, eu chorei muito, fiz o maior escândalo, mas foi tudo fingimento. Todo mundo acha que eu estou sofrendo até hoje. Todo mundo são alguns parentes que eu vejo de cinco em cinco anos. No fundo eu achei ótimo quando ele morreu. Finalmente eu pude viver sem alguém com quem eu não podia conversar. O senhor entendeu esta frase?".

"Não, deixe-me ver: a senhora finalmente pôde viver sem um poste dentro de casa".

"É isso, há... há... um poste, não. Um mourão apodrecido... há... há... há...".

"Há... há... há... a senhora é demais".

"Meus dois filhos, logo que o pai morreu, me abandonaram. Até hoje eu não sei porque eles freqüentavam a nossa casa. Eles já eram casados, tinham filhos, e viviam se oferecendo para serem humilhados por mim e pelo mourão apodrecido. Foi o pai morrer e os dois sumirem. De uma certa forma eu lhes dou razão. Eu também fui uma mulher mesquinha, insegura, egoísta, manipuladora, inconsciente, inconseqüente. Pensava o tempo todo nos vizinhos; na possibilidade de alguém estar me vigiando. Não me abria a parentes e amigos, com medo de me expor, e hoje eu vejo que era justamente disto que eu precisava: que alguém se intrometesse na minha vida para que eu enxergasse o quanto mesquinha eu era. Se a minha cachorrinha andou dando, que se dane! Eu não fui capaz de criar os seus filhotinhos. Eles eram os meus verdadeiros netos e eu os abandonei. Depois vieram os netos verdadeiros, e como o meu sangue ruim corre nas suas veias, me tratam com muita agressividade. Eles me tratam como eu realmente devo ser tratada, e eu não os culpo por isso, nem me culpo por ter vivido dentro de um casulo de contradições. Que se danem os vizinhos. À puta que o pariu todos eles. Que se dane o meu pai, trepando com a minha mãe, e eu acordada na cama ao lado, fingindo dormir, e morrendo de ódio da pouca vergonha da minha mãe, que falava tão mal dele, e à noite, deixando que ele a maltratasse, e ainda por cima, rindo baixinho e virando os olhos, parecendo sentir prazer. À puta que o pariu todo mundo, inclusive você, com essa cara de veado enrustido aí, sentado ao meu lado".

"Há... há... há... a senhora é demais".

"O que me restou foi isto: a praça! Todos os dias eu venho para a praça, sento neste banco; sempre neste, e fico olhando as pessoas passando, cada uma carregando um saco de mentiras. Todas as pessoas têm o seu. Todas elas, impreterivelmente... Todas são hipócritas, mesquinhas, inseguras e egoístas como eu sempre fui".

"Isto eu também acho. Olha aquele carteiro: ele está olhando para o casal de namorados se beijando. Ele deve ser frustrado. Não beija a mulher há anos, e daqui a pouco sairá correndo para um banheiro público para se masturbar".

"Ou chegará em casa agredindo a mulher por não conseguir fazer o mesmo que o casal está fazendo".

"Fazer o mesmo até que ele pode, mas, certamente, não sentirá o mesmo".

"Eu passei a vida sendo hipócrita como todo o mundo. O senhor acha que ainda é tempo de mudar? O senhor acha que se eu continuar verdadeira como estou sendo agora, serei mais feliz?".

"Mais feliz eu não sei, mas que será bem mais divertido conviver com a senhora, isto eu garanto. Cada 'Puta que o pariu' que a senhora disser, será mais divertido do que o anterior. O que importa na vida é a diversão, a alegria, o amor. Talvez depois dessa conversa eu mude um pouco também. Eu sou muito fechado, muito enrustido, como a senhora mesma disse. Por exemplo: quando parei para sentar-me ao seu lado, iria agir da seguinte forma: pegaria o lenço no bolso de trás da calça, limparia a água do banco, e mesmo se o lenço estivesse todo encharcado, e o banco ainda molhado, eu dobraria o lenço, o colocaria no bolso traseiro e me sentaria, fingindo que tudo acontecera da maneira mais correta".

"Mas por que o senhor agiria assim?".

"Talvez para não incomodá-la. É... para não incomodá-la! Para não chamar a sua atenção. Se ficasse secando o lenço, torcendo-o, talvez chamasse a sua atenção e a senhora quisesse conversar. Eu não queria conversar, só queria sentar-me no banco, de preferência, que ele estivesse seco, e ficar aqui, sentindo a sua presença, imaginando algumas formas de matá-la. Olharia para os seus dedos sobre a saia marrom; isso depois de duas horas tentando virar ligeiramente o rosto para o lado, para poder enxergá-los, e quando conseguisse, imaginaria qual dos facões usaria para cortá-los; a senhora amordaçada, tentando gritar, sem conseguir, os olhos arregalados, o rosto avermelhado, e fatalmente, no momento em que eu estivesse imaginando isto, teria uma ereção, e depois de esquartejá-la em pensamento, sentiria o esperma queimando-me as pernas".

"Nossa, o senhor seria capaz de sentir tudo isto por mim?".

"Sim".

"E depois?".

"Depois eu me levantaria e sairia andando apressado, com medo da polícia, cheio de complexo de culpa. Mas hoje eu fiz diferente: limpei o banco, recusei a sua ajuda, apesar de ficar muito lisonjeado por uma senhora tão distinta se oferecer para ajudar-me, e me diverti bastante com suas estórias de repressão e culpa".

O cachorrinho preto ganiu. D. Dinorá olhou assustada para o lado e viu um enorme cachorro saindo da praça, levando o perônio do Valente à boca. O cachorrinho, petrificado, mostrava alguns cacos de dentes ao rosnar para o cachorrão. D. Dinorá sentiu novamente pena dele. O homem levantou-se e saiu andando, também olhando; ora para o cachorro com o osso à boca, ora para o cachorrinho preto. A parte traseira da sua calça estava molhada. D. Dinorá encarou-o com aflição, e chegou a sentir-se envergonhada, como se ela própria estivesse andando, parecendo ter-se urinado toda.

 

 

 

 

O Braço

 

Foi uma brusca freada, e eu, da varanda, de rosto franzido e olhos fechados, esperei por intermináveis segundos até que o carro parasse, e justamente neste espaço de tempo, ouvi um barulho seco, compacto, vindo do telhado, como se um saco de farinha tivesse sido jogado ali.

Olhei par cima e do lugar onde me encontrava vi apenas alguns dedos transpondo a quina da calha. Peguei rapidamente a escada e subi, na tentativa de salvar aquela criatura, porém, em cima do telhado só havia um braço acompanhando aqueles dedos inertes.

Desesperado, olhei para a rua e gritei, chamando as pessoas que pareciam procurar algo ao redor de um corpo já coberto com folhas de jornal.

 

 

 

 

Sim

 

— Sim — eu disse, diante da insistência de Helenice por uma resposta, mesmo que negativa.

Eu não queria ter dito sim, eu não deveria. Estava me odiando naquele momento por ter pronunciado aquela palavra. Até aquele momento eu não sabia que ainda restava algo entre nós, que me levara a dizer aquilo.

— Então eu vou desfazer as malas — ela disse, arrastando duas enormes malas para o quarto.

Eu aceitei a minha derrota e fiquei um bom tempo fumando na sala, remoendo mágoas, e quando ela me pediu, ainda do quarto, para que eu guardasse as malas vazias, enquanto tomava um banho, senti um princípio de ereção, e poucos minutos depois, me despi e passei a esperá-la deitado na cama.

 

 

 

 

A Fragilidade do Desejo

 

Ele era estagiário, ela chefe de setor. Ela procurava, ele ardia. Ele desejou aquele corpo de sereia madura, ela aventura. No motel ele desfez-se das vestes e expôs sua nudez sem constrangimento. Ela se despiu em parte. Ele, da piscina, passou a observá-la: canelas finas, ancas largas, diferentes das de sua preferência nas revistas eróticas. Sob o sutiã transparente, os seios, de aréolas e bicos escuros, tentavam escapar. Aquele modelo, de qualidade dúbia, não era o de sua preferência. Ele mergulhou, eternizando os segundo. Ela tentou, em vão, solidificar o vento. Ele se desculpou. Ela pagou a conta. Ele voltou para as suas revistas.

 

 

 

 

O Banquete

 

Acordei com o sol queimando-me o rosto. Abri vagarosamente os olhos e após ser agredido por uma intensa claridade, me deparei com o azul deslumbrante de um céu sem nuvens. A cidade borbulhava. Queria estar longe de casa, porém, quando criei coragem para olhar ao redor, descobri estar na Praça Antero de Quental, bem em frente ao prédio onde morava. Aos  poucos fui me lembrando da festa, da minha briga com a Marta, após a saída dos convidados, da sua maneira agressiva me mandando tomar cachaça com os mendigos da praça, da minha determinação, comprando várias garrafas e oferecendo um banquete aos meus novos amigos.

Levantei-me com dificuldade, apoiando-me em uma árvore. Algumas babás me olhavam ao longe, chamando as crianças para junto delas. Quando eu vi que estava todo mijado e cagado, coloquei a camisa sobre o rosto e caminhei cambaleando para casa.

 

 

 

 

Confissão

 

Não foi bem assim que a coisa aconteceu, mas para amenizar a minha situação diante da justiça, fui obrigado a inventar aquilo tudo. Agora, arfando aqui no leito de morte, necessito dizer que naquele dia, apesar do ódio que sentia por Luiza, não tinha intenção de matá-la, a não ser que ela estivesse com o amante naquele momento, no entanto, ao passar frente ao banheiro, notei que Luiza tomava um banho de espuma. Ao seu lado, numa pequena mesa de armar, havia um abajur aceso, uma garrafa de vinho Rubesco Torgiano, com uma taça pela metade e algumas planilhas que ela pretendia analisar. Eu entrei e caminhei em sua direção. Ela sorriu e me chamou, estendendo os braços. Eu também sorri, e ao virar-me, esbarrei propositadamente com o cotovelo no abajur, empurrando-o para dentro da banheira. Depois esperei que Luiza acabasse com aqueles horríveis solavancos, para  sair desconsolado a procura dos vizinhos.

 

 

 

 

A Resistência

 

Ela já se foi, só eu permaneço nesta sala imensa, irritado com o eco de pequenos barulhos que faço ao movimentar a perna, para evitar dormência. Estou sentado no chão, a contemplar algumas contas do colar que partira na hora da agressão. São falsas contas, como já é falso, há muito tempo, o nosso relacionamento. Eu já não me importo com as suas indiscretas e infrutíferas tentativas de se envolver com a juventude, porém, a juventude tenta discretamente se envolver comigo. Isso faz com que ela adquira nas expressões e atitudes um desejo de esmagar o mundo, uma necessidade de destruir o belo, uma fúria incontida, que hoje culminou numa cena patética, fazendo com que os convidados, inclusive o pivô da revolta, que eu espero rever em breve, saíssem discretamente, me deixando aqui sentado, tentando gastar, até a última gota, a resistência inata do ser humano quando o assunto é a separação.

 

 

 

 

Um Homem Com Poderes

 

Um homem com poderes chegou à cidade. As pessoas que o viram, se renderam à sua força espiritual, e logo a notícia se espalhou, fazendo com que todos fossem para a praça. Eu, segurando na barra da saia  de minha mãe, observava, como todos, o homem, a armar uma mesa perto do chafariz. Seus gestos eram ritmados e precisos e o seu rosto, expressivo, amedrontava a população. Depois de colocar vários frascos de um remédio milagroso sobre a mesa, não foi necessário discorrer sobre suas qualidade por muito tempo, pois, logo todos se espremiam para conseguir um.

Mais tarde, depois de lanchar na casa do prefeito, o homem seguiu enganando,  deixando para trás várias pessoas curadas; não por realmente ser milagroso o seu remédio, e sim, pela sua força de expressão e sua capacidade de representar.

 

 

 

 

Elas

 

Ela cabe na palma da minha mão. Tão meiga, tão frágil, no entanto, essa capacidade de despertar desejo, amor. O seu discreto sorriso, a blusa de seda, o perfume impregnado, tudo isso me cativa.

Após o longo período em Amsterdam ela voltou, e logo iniciou um processo de reconstrução da vida. Eu fazia parte dos seus planos, pois, me procurou, porém, inexplicavelmente, depois de anos de sofrimento, ela não me reconquistou, pois eu não senti o que senti e sinto até hoje pela fotografia que me fora deixada.

 

 
 

 

 

Nerino de Campos (Belo Horizonte-MG). Além de escritor, é desenhista, ilustrador, programador visual e artista plástico. Foi premiado com Menção Honrosa na Bienal do Livro do Rio de Janeiro, publicado em vários sites literários e teve um conto selecionado entre os 1.584 que concorreram em concurso patrocinado pela Rádio France Internationale. Participou, também, com contos e poesias, de debates realizados no SESC -SP, o "Balaio de Textos", que teve coordenação do escritor João Silvério Trevisan.

 

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