©photodisc collection
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Meditação à margem do Rio Amarelo
 
Queimei a pólvora dos meus dias lendo as entrelinhas do capital.
Decidi que o mundo foi feito para acabar em um livro.
Esterilizei a terra e alterei o curso dos rios.
Ergui palácios de papel sobre estruturas e vigas de vidro.
Escureci a noite e tirei os dentes do riso.
Apaguei a memória dos mortos e matei o viço dos vivos.
Carcomi o azul do céu e ceifei as raízes do trigo.
Hoje o meu império vacila e rebenta como um corpo balofo cheio de estrias.
As crianças estão velhas e rugas brotam do amaranto.
Tudo o que toco parece ter dois mil anos.
Talvez seja isso o início do que chamam sabedoria. 
 
 
 
 


A terra não acaba porque a alma afunda
 
A terra não acaba porque a alma afunda.
Recolhe-se ao suspiro das pedras que ordenham a noite.
Vê: a geometria só existe porque o movimento a articula.
A ciência dos mortos dentro de um arbusto
É a mesma do nascimento de flores prematuras.
Os olhos só vêem a verdade que flutua.
O resto é ilusão: falso amor que só preserva o que anula.
O cais deixando o barco, o vôo entre os braços das árvores
Que eclodem em uma lâmpada.
Um deus qualquer que vê além da morte o que a morte não captura.
Sim, amor, a alma só persiste porque a terra se extingue.
Prenhe de leveza antes da chuva, eclipse do corpo em atributos,
Assinatura do dia que se enrola (perfeito)
Na retidão sutil de cada curva que a mão refaz na nuvem
E modela dois diamantes em uma só torção de busto.
Entre a eternidade e o vinco que a unha faz no fruto
Em um beijo revivemos, tu e eu, todo o futuro. 

 

 


Manhã negra, açúcar, bebo o orvalho de um rosto

Este açúcar negro que despejo em uma manhã de agosto
É o suor de uma face sulcada pela selva.
Diluo lentamente a sua carne no café que exala
O sangue macio, a menstruação de luz, a primavera,
A pele perfumada, o hálito da boca em brasa,
Sua resina que se granula sob a pálpebra da lua,
No seu fundo se deposita e ainda se conserva.
A arquitetura porosa dos ossos se traduz em um só gosto.
As fibras da língua e a saliva se preparam para a flor
Ceifada do todo e, despicienda, retida entre as mãos, em seu aborto.
Imolo a sua doçura no pavilhão da xícara, e ele,
Prestes a mergulhar em mim e em uma só carícia cega
Povoar-me os sonhos e rechear-me o interior de cada célula.
Dissolvo-o vagarosamente nos giros da moenda.
O aroma se desprende e enche toda a sala:
Mão diáfana com sua linha feita a faca,
Costas estriadas em arabesco como um cesto de vime.
Pausado, levo a emulsão aos lábios e desfruto
A repetição de mais um ritual civilizado
Como quem em plena luz comete um crime.

 

 

Ventilo esta rua com minha carne e seus vocábulos

Ventilo estas ruas com minha carne.
Os sapatos farejam os caminhos sulcados pelos pés dos mortos.
Todos os heróis morreram no mar.
Só nos resta a realidade dos guindastes e o vocabulário dos cães e das árvores.
As crianças se acendem nas sacadas.
Todas as janelas se iluminam sob o sorvedouro deste céu de pássaro.
A salsugem corrói a engrenagem dos carros, a enseada, o moinho, os acrobatas que
saltam para o interior dos livros.
A madeira carcome os músculos e robustece a vinha.
O amor não pode com a ferrugem dos navios ancorados no dorso da matéria, mais
reais que a saliva com que te beijo e me despeço.
Com a manhã expelida das roupas de uma varanda trêmula.
Com o espelho vegetal das conchas que semicerram sua íris: meio-dia.
Com a ressurreição da voz que já não tarda a emergir da goiva, do ferrolho, dos patíbulos.
 
Este é o frescor da manhã.
Imune à assepsia da virtude e aos trabalhos sujos do tempo.
Aqui é quando estou em meu centro.
Tão distante do corpo onde me perco quanto da alma onde me ausento.
Onde sinto minhas mãos e minha pele.
Onde sou o que sinto: nervo da areia no interior solar dos poros.
Onde nada se separa e tudo me adere.
A fatia de luz na mesa, o mar arfa em seus parapeitos de água,
A face se eclipsa, o chafariz cospe barcos antigos no interior da praça.
 
A hora extrema não é o suicídio.
A liberdade não é recusa ou desespero, mas a tranqüilidade da luz que retorna a seu
seio durante o exílio do sol.
Povôo esta baía, estas ruelas, este golfo, este mar, este porto, estes corpos, estas paredes
podres comidas pelo dia.
A hora extrema é delicadeza, quando escolho aquilo que já me destina:
Livre até depois da morte da semente, pão além do pão, trigo além do trigo, sopro que
inaugura esta paisagem,
Paisagem que me move e que me assina
.

 


[Em Pedra de Luz. São Paulo: Editora A Girafa, 2005]

 
 

Rodrigo Petronio é escritor. Autor dos livros História Natural (poemas, 2000), Transversal do Tempo (ensaios, 2002) e Assinatura do Sol (poemas, 2005), este último publicado em Portugal. Lançou, em 2005, o livro de poemas Pedra de Luz, pela editora A Girafa, finalista do Prêmio Jabuti 2006.
 
Mais Rodrigo Petronio em Germina