© guy denning

 

 

 

Wolfgang Amadeus Mozart utilizou um texto velho em latim, mas sempre eficaz (e de acento bem apocalíptico) sobre o qual compôs música inesquecível, e que se chama, no Requiem, "o dia da ira": da ira divina, que é, afinal, apenas a velha justiça poética.

Completei um ano escrevendo a Officina Perniciosa, e hoje é o dies irae desta página. No primeiro texto que escrevi para a Officina estavam listadas algumas preocupações com a situação, sugestões de mudança, mas afinal, o que aconteceu? Rien a changé. Então, tem havido um debate intenso sobre as condições da arte e da literatura no Brasil e no mundo, porque muitos se encontram perplexos com a imobilidade e o tédio que mal conseguem explicar: o que está havendo?

As artes que não fossem as mais especificamente de grande público, como o cinema e a música popular, já vinham se encaminhando para um bloqueio completo, dado o apodrecimento do ensino escolar, as diferenças monumentais de cultura entre os indivíduos de uma mesma cidade e geração, o recolhimento das próprias artes como um apêndice demonstrativo de teses universitárias.

Em resumo, há uma situação basicamente informe (alguns dirão "disforme") diante dos nossos olhos, esperando o momento em que cada uma das partes desse aparente cadáver vai se articular em vida alquimicamente. Na verdade, suponho que isso já esteja acontecendo, longe dos olhos da maioria, que é exatamente onde todas as coisas tendem a começar — lembrar do caos inicial em 2001: uma odisséia no espaço, de Stanley Kubrick, isto é, uma tela escura cheia de ruídos.

Detalhemos, para gáudio de nossos leitores:

 

Sociologia e literatura: a literatura é uma das coisas que fazem parte do interesse e da pesquisa de um sociólogo. Por outro lado, o sistema sociológico não serve para ler literatura como literatura, porque lê sociologia nela. E isso é, francamente, óbvio. Antonio Candido é um grande sociólogo da literatura, disso ninguém terá dúvidas, mas repetem sempre que é "o maior crítico literário brasileiro", talvez por acharem que dá no mesmo. Não dá. Seus julgamentos literários freqüentemente erraram a mira quando era vital que tivessem acertado, dada a influência que exercem. Alguns exemplos: o caso de Sousândrade, o caso de Gregório de Mattos, o caso de Castro Alves, sua lista de 25 livros em prosa indispensáveis, o método passo-a-passo de "análise e interpretação" até hoje corrente nas universidades, etc.

 

Provincianismo: considerar a qualidade de um poeta em relação aos da sua geração e país é inútil, e faz procriar um minúsculo e sem importância mais do mesmo. No Brasil costuma-se endeusar grandes nadas porque não se tem curiosidade alguma em se saber se alguém já fez aquilo tão bem ou melhor em algum outro lugar ("oh, não, temos que falar bem das nossas coisas"); daí que os padrões pelos quais se aufere qualidade costumam ser bem absurdos, se é que convém chamá-los "padrões". Manuel Bandeira já tentava criticar esse costume brasileiro no Itinerário de Pasárgada, mas, como de hábito, não deram ouvidos ao alerta.

 

Arte Conceitual: o conceito serve, na filosofia, para fornecer parâmetros ou definições. A arte conceitual surgiu de Marcel Duchamp, que havia, na verdade, ajudado a enxergar um sem-número de vícios e tolices impensadas na arte que vinha muitas vezes como apenas um tique, da metade do século dezenove até o modernismo (a expressão "arte conceitual", em todo caso, não descreve satisfatoriamente sua refinada arte crítica, ou paródica). O fato de sua ironia e de seu pensamento contraditório terem se tornado uma quadradíssima instituição acadêmica provocaria de um jovem inquieto, como ele mesmo o foi, um gesto de aniquilação. Serve apenas, ultimamente, para legitimar gente convencional em exposições nacionais e internacionais de conversa fiada (particularmente dessas grandes estrelas da arte, os curadores).

 

Teoria: a carga pesada de teoria do último século em relação à arte é algo de que em algum momento no futuro rirão de nós. A teoria é como um buraco negro: suga tudo que se aproxima para dentro. Ou: a dissecação só se costuma fazer em corpos já mortos, o que é um péssimo sinal. A teoria é um problema porque, com o tempo, começa a se sobrepôr ao objeto que considerava (uma confusão que os setores depreciativamente chamados "de massa" da cultura não têm). E como a teoria é uma proposição cheia de regras e nomenclaturas, dificilmente pode ser aceita senão in toto, e com infinitas cabriolas.

 

Má educação: como alguém poderia se queixar da inexistência de critérios mínimos e tácitos se não há nenhum tipo de educação razoável? Sacrificada a Moloch (o mercado de trabalho), ao inconsistente vestibular e a todo tipo de entidades parasitárias, a educação no Brasil é um grande zero. Inexiste (não estou usando uma figura de linguagem. A palavra é inexiste). Batalhões de ignorantes saem tateando o mundo esquálido da cultura todo ano. NENHUM governo sequer se preocupou com isso. Repitamos, para que não haja dúvida: não chega dinheiro nem direção intelectual para acabar com a miséria da educação. Nunca. Isso não interessa. Vamos salvar os pobres bancos da falência, ou, vamos cortejar o dinheiro da especulação financeira internacional, ou, vamos torrar o dinheiro público para evitar que provem o nosso mau uso do dinheiro público.

 

Vender: não é verdade que boa literatura não vende. É verdade que ninguém se dá ao trabalho de fazer propaganda para a boa literatura vender, mas gastam-se zilhões em propaganda de todo tipo de lixo. É possível vender o que se quiser com propaganda, mas evidentemente acham que é melhor fazer isso com os tranqüilizantes, isto é, todas essas coisas que deixam um sujeito anestesiado num sofá diante da tv (ou que o tornam tão obcecado com o próprio corpo ou com o dos outros que não há mais espaço para nada dentro da massa cinzenta).

 

Desfibrilador

 

Preparar para a descarga de dois mil volts

dois mil e quinhentos

três mil volts.

 

(vamos, poesia,

respira).

 

Conservadorismo: muito simples, pode ser visto em toda parte, e vem crescendo, se espalhando como uma praga. O conservadorismo tem esse nome porque é um imobilismo mental: se estabelece quando alguém encontra um lugar confortável para a letargia de sua mente e não quer mais se mover. É um sedentarismo mental mórbido. Pretende se conservar daquele jeito. As pessoas pensam em tomar decisões convencionais que não arrisquem seu futuro (diga-se: financeiro, porque é a isso que se reduz tudo). Uma sociedade-necrotério: assume-se que estão todos mortos em vida. Ou como escreveu Thom Yorke: no alarms and no surprises. Aí é que está a origem dos nossos conservas: o medo de que por acaso o simples movimento venha a mudar alguma coisa.

 

Escritores "Profissionais": escritores meramente razoáveis, que são escritores profissionais, meio jornalistas, sem nenhuma convicção artística e que estão lá para apenas fazer um serviço. Ou os que publicam um romance por ano, destinado a virar um roteiro de cinema, ou preencher com nomeada uma anêmica coleção, ou parar na estante das pessoas que não estão interessadas em ler. O problema não é o de eles existirem e fazerem o que fazem, coisa bastante normal e que sempre existiu, mas que, num meio como o nosso, os meramente razoáveis, que encaram a coisa como bater ponto, se tornam os únicos escritores. O que nos põe no ambiente anômalo em que giram apenas polêmicas e idéias triviais, do tipo: "ah, quem será o próximo a vestir o fardão (ser empalhado)?" Sim, sempre há certo alvoroço quando algum paspalho do comércio de livros agita os pauzinhos para ganhar uma cadeira no clube provecto e passar suas tardes roncando após o chá.

 

Editoras: o motivo da existência das casas editoras era descobrir grandes autores, e elas muito se orgulhavam de suas descobertas e exibiam catálogos admiráveis de talento editorial, e muitas vezes até encaravam processos judiciais, dada a natureza perturbadora dos livros que publicavam. Hoje há bons autores com dois livros completos na gaveta, sem publicar há mais de cinco anos. Os editores desistiram, dizendo para si mesmos, emulando o famoso gesto de Pôncio Pilatos: "é isso que eles querem, daremos isso a eles". Compram porcarias com garantia de venda e estão se lixando para reputação — mesmo porque basta utilizar papel pólen e um design gráfico razoável para conseguir algum cabeça-de-alfinete que diga se tratar de uma editora respeitável, que publica livros igualmente respeitáveis.

 

                               

Se bastam bares de conversa amena

ou arte é apenas o apelido

de cinco salas de cinema,

tudo até vai bem: mas a nós,

que sempre criamos caso,

ninguém virá com essa bobagem,

mesmo com longas orelhas de asno;

portanto, a despeito do espanto

dos que seguem o que é feito somente

de vento, estejam avisados:

não trocamos nosso riso

pela cômoda tolice dos deslumbrados.

 

 

Fantasia

 

Guy Debord estava certíssimo quando chamou esta sociedade de "sociedade do espetáculo".  Mas que espetáculo é esse, e por que é nocivo? Dramatiza-se, numa conseqüência extrema do romantismo burguês, cada mínimo detalhe da vida, e a todo momento, por causa do uso que se faz das telecomunicações, que te agarram pelo pescoço através de tubos de raios catódicos, visores de cristal, etc.

As pessoas vivem como aqueles zumbis de George Romero, se alimentando da vida medíocre das ricas celebridades, da trivialização de todas as coisas triviais nas novelas, nos programas que repetem apenas as experiências mais imediatas. Isso matou sua imaginação e o desejo que tinham de ser mais do que são, e é por isso que uma novela se emenda na outra, para não dar espaço para pensamento nem imaginação nem, obviamente, para a concorrência: é preciso manter as pessoas o mais zumbis possível.

Esta é uma defesa da fantasia e do mito. É uma farsa afirmar que são aspectos regressivos da cultura, porque são de fato o contrário: são prospectivos.

Pela falta disso as pessoas devoram as próprias fezes todo dia diante da tv, no trabalho e na vida mesquinha; pela falta disso as pessoas deixaram de sentir qualquer tipo de aspiração que não seja aquela socialmente estipulada nos códigos das  de auto-ajuda e auto-motivação, nas apostilas de aperfeiçoamento profissional das empresas, nas regras censórias de uma religião qualquer, porque disseram a esses tolos (e eles acreditaram) que, se seguirem as regras, vão chegar a um lugar florido chamado Felicidade, onde ficarão sorrindo e acenando para uma câmera que registra o grande pequeno momento.

Romantismo1 e arte burguesa: a sentimentalidade, a vida entre quatro paredes, o burguês que assistia contar pela enésima vez, com lágrimas nos olhos, a sua conturbada escapadela adúltera, seu sentimento cristão de culpa e o drama que se seguia. O burguês do XIX estava satisfeito com seu punhado de dinheiro e a sua débil rotina social, e queria dizer isso a todos. Ele espalhou sua praga pelo mundo.

O retrocesso é essa mímica repetitiva e tediosa de cada mínimo ato da vida, sem a escolha estética da representação, da composição, da ordem artificial e da imaginação da arte. Porque o que se tem chamado de arte não é isso, é apenas a reprodução em estado bruto do mesmo, é um sono sem sonhos, como na pequena alegoria de Matrix: alguém está vivendo de sugar essa vida em paralisia. E esse alguém sabe disso.

 

 

Duas palavras sobre traduzir Os Cantos, de Ezra Pound

 

Para não perdermos o hábito esquisito de falar sobre literatura. Ezra Pound, poeta, músico2, crítico e tradutor estadunidense que foi um dos responsáveis pela aceitação do verso livre no começo do século, e autor dos monumentais The Cantos, é o meu assunto aqui, e particularmente as traduções já feitas ou em processo desse poema.

Seria impossível (ou censurável) passar despercebida do bom tradutor a revolução operada por Pound na idéia de tradução literária. Para ser breve e preciso, basta dizer que Pound é a base para toda tradução inventiva, transcriativa, ou de qualquer modo, literária, porque ele praticou, com diversos resultados, a tradução como reinvenção, como adaptação, diagrama da técnica, exercício poético, paráfrase, crítica do texto de origem, máscara, e até mesmo um tipo curioso de tradução de acompanhamento para a edição bilíngüe que publicou do poeta italiano do dolce stil nuovo, colega de Dante, Guido Cavalcanti. Hoje, a tradução artística de um texto, ou, digamos, a tradução que pretende se reverter em texto artístico na chegada, leva sempre em conta as inúmeras descobertas de Pound.

No Brasil, como não poderia deixar de ser, sua acolhida como poeta passou também pela tradução. Os exemplos mais notáveis, seja pela qualidade, seja pela extensão, são os que começaram com Mário Faustino em meados da década de 50 do século que nos deixou, e ganharam amplitude com o concretismo, principalmente nas figuras de Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari e José Lino Grünewald. Vou comentar as traduções dos quatro últimos, já que Faustino não traduziu os Cantos, e vou dar alguns exemplos da tradução que comecei a fazer. Mas antes é preciso falar um pouco do que é a linguagem desse poema que Otto Maria Carpeaux, o maior crítico literário brasileiro (ainda que vienense) chamou "um fracasso grandioso".

Octavio Paz, que, suponho, todos concordamos ter sido grande crítico, além de grande poeta, disse que a linguagem de Pound nos Cantos tinha origem nos franceses cubistas, unanimistas, e concentrava suas observações no estilo de Apollinaire em "Zone". Analogicamente à linguagem cubista das obras pictóricas, que se estruturava pela colagem de vários planos num único todo, o poema de Apollinaire teria sido o primeiro a descobrir que a poesia poderia, também, desmantelar os nexos lógicos da sintaxe tirando proveito da colagem. Paz então acha estranho que em nenhum momento de sua copiosa obra crítica e epistolográfica Pound mencione Apollinaire aproximando-o para uma comparação. A minha opinião é a de que Pound não mencionou Apollinaire porque não o agradava o tom romântico residual daqueles poemas, e porque provavelmente o considerava um pouco tagarela para seus critérios de concisão. Por outro lado, não me parece que esgotamos o assunto cubismo em Apollinaire, apesar dele ter sido o grande descobridor — em termos críticos no livro Peintres Cubistes — dessa arte. Também foi ele que demonstrou que Picasso sofreu influência inicial de Braque, quando todos endeusavam o espanhol e se esqueciam de mencionar seu companheiro.

Mas tomemos então um outro entusiasta do cubismo, que escreveu um livro todo sobre Picasso e era seu amigo pessoal também: Jean Cocteau. O que Pound teria dito da poesia de Cocteau, fortemente influenciada pelo cubismo? Em sua correspondência encontramos:

 

Eu acredito que Cocteau, que vocês glorificam como dramaturgo e negligenciam como muito bom poeta menor, deu sua contribuição para libertar a língua francesa de seus frufrus (Poésies, 1920). É para a língua francesa — perfeitamente inútil para nós que escrevemos em americano — vale dizer: invenção de utilidade local.

 

Pound escreveu isso numa carta em francês para René Taupin, comentando a poesia francesa que o influenciara, ou não, para que Taupin publicasse, em 1929, um livro muito útil a nós, bisbilhoteiros, chamado L’Influence du Symbolisme Français sur la Poésie Américaine (de 1910 a 1920)3. Em que pese eu gostar muito de Mr. Pound, devo contradizê-lo, pensando na poesia do próprio. Se lemos os Cantos na versão antiga, i.e., os três iniciais  que foram publicados em 1917 na edição nova-iorquina de seu livro de poemas Lustra (Knopf), vemos que Pound ainda estava tendo trabalho para se livrar do peso do monólogo dramático de Robert Browning, que pode ser rastreado em todos os três Cantos.

O livro de Cocteau Le Cap de Bonne Ésperance, que tem a linguagem cubista tão semelhante à dos Trinta Cantos definitivos da edição de 1930, é de 1917 também. Sabemos que Pound leu o livro porque em 1921 ele anuncia a Marianne Moore a publicação, na Little Review — com a qual contribuía na qualidade de editor —, de uma tradução completa do Cap de Bonne Ésperance, com ilustrações de Brancusi4 E diz também à pianista Agnes Bedford: "Leia Cocteau (acho q você já o faz); leia mais se ainda não leu tudo dele". Mais revelador ainda é o ensaio que publica em "The New English Review", em 1935, chamado "Jean Cocteau Sociologist", que abre da seguinte maneira: "A coisa mais viva em Paris, 1933, era Jean Cocteau." E daí em diante seriam só os elogios mais sonoros: Cocteau é melhor escritor que Rémy de Gourmont, é o único dramaturgo vivo que Pirandello leria com respeito, tem a mente mais livre e pura da Europa, etc.

O importante de todos esses fatos é que o cubismo foi a linguagem que sedimentou os Cantos, tendo surgido com Apollinaire e Reverdy e tomado a força que impressionou Pound no Cap de la Bonne Ésperance, de Cocteau. A influência do ideograma chinês fez apenas confirmar para a mente de Pound onde estava o caminho a seguir, e que se chamava colagem. Como exemplos adicionais, mas ainda assim muito importantes, podemos também citar a estrutura paratática das épicas medievais, principalmente a Chanson de Roland e o Poema de Mio Cid: nesses dois poemas que Pound apreciava encontramos estruturas de superposição pura e simples de imagens com fraca conexão sintática. Poderíamos dizer, do jeito que Pound apreciava, que tudo isso daria um bom ideograma de sua poesia.

Suponho que para uma tradução satisfatória dos Cantos todas essas e mais outras tantas coisas devam ser levadas em consideração; evidentemente, o que expus até agora é só parte, digamos, geral ou mais aparente, das diversas camadas de texto que pavimentaram o poema. Há decisões mais locais em alguns dos Cantos que sempre precisam ser tomadas quanto à tradução, e o serão mais facilmente em se perguntando de modo simples e sincero: "Mas o que Pound queria com isso?" E vamos considerar logo de início o Canto I, que tem uma história curiosa: é a tradução em inglês da versão em latim do começo do Canto XI da Odisséia, de Homero, feita por Andreas Divus Justinopolitanus, na Renascença. Pound anuncia de um só golpe o embaralhamento de tempos, língua e culturas que será o seu poema. Não vamos discutir aqui o porquê, de resto muito interessante. Pound declarou que esperava começar os Cantos fazendo com o texto de Homero algo parecido com o que fizera anteriormente com a elegia anglo-saxã do "Navegante": oferecer um poema que resgatasse, de certa forma, o estilo aliterativo que caracterizava não só a poesia anglo-saxã, mas diversas outras poesias anteriormente à rima — podemos ver no Mio Cid um sistema semelhante, o das assonâncias, e podemos rastrear a maestria do estilo aliterativo já nas Metamorfoses de Ovídio. Mas Pound começa:

 

And then went down to the ship,

Set keel to breakers, forth on the godly sea, and

We set mast and sail on that swart ship,

Bore ship aboard her, and our bodies also

Heavy with weeping, and winds from sternward

Bore us out onward with bellying canvas,

Circe’s this craft, the trim-coifed goddess.

Then sat we amidships, wind jamming the tiller,

Thus with stretched sail, we went over sea till day’s end.

 

A opção de José Lino Grünewald, que traduziu o poema todo menos dois Cantos de publicação só muito recente (o LXXII e o LXXIII, os chamados Cantos Italianos, escritos originalmente em italiano), é muito frágil, porque traduz as palavras, sem se aproximar do ritmo, nem das aliterações, e nem do tamanho original dos versos:

 

E pois com a nau no mar,

Assestamos a quilha contra as vagas

E frente ao mar divino içamos vela

No mastro sobre aquela nave escura,

Levamos as ovelhas a bordo e

Nossos corpos também no pranto aflito,

E ventos vindos pela popa nos

Impeliam adiante, velas cheias,

Por artifício de Circe,

A deusa benecomata.

Assim no barco assentados

Cana do leme sacudida em vento

Então com vela tensa, pelo mar

Fomos até o término do dia.

 

Provavelmente Grünewald terá percebido que estendia demais os versos em sua tradução mais prosaica e resolveu recortá-los onde achou que fosse possível. O resultado, que se espalha para a tradução de todo o livro, é deixar a poesia de Pound sem atrativos técnicos, discurso apenas, e o leitor da versão em português talvez se pergunte por que motivo o estadunidense seria tido como um dos maiores poetas do século passado. Nem mesmo a tradução do primeiro verso do poema, todo em monossílabos, assim como no original em inglês, foi feliz. Pound usou monossílabos porque é fácil fazer isso em inglês, e de certa forma puxa o caráter anglo-saxônico para o poema. Em português, além de soar forçado, não carrega o verso do mesmo sentido, visto que não temos ascendência lingüística anglo-saxã a que recorrer.

A adaptação do metro antigo greco-romano, as aliterações e versos de sonoridade cativante desapareceram; como exemplo deste trecho, tomemos o verso: "Thus with stretched sail, we went over sea till day’s end" Grünewald partiu esse verso em dois, sem música: "Então com vela tensa, pelo mar/ Fomos até o término do dia." Por comparação, vamos à tradução de Augusto e Haroldo de Campos, e Décio Pignatari: "A todo pano, singramos até o fim do dia", e à minha, que é: "E assim a toda vela, varar o dia navegando." As três traduzem o sentido, mas são sensíveis as diferenças na musicalidade do verso.

Não é possível estender aqui o comentário sobre a tradução, de resto, corajosa e pioneira de José Lino Grünewald. Mas é preciso notar que ele deixa também de traduzir algo que é peculiar na poesia de Pound, o registro de sotaque. Temos um exemplo no Canto XX, em que Pound relata sua visita ao provençalista alemão Emil Lévy, em Freiburg, com o propósito de esclarecer o significado da expressão "olor de noigandres", encontrada na canção XIII do trovador provençal Arnaut Daniel. O original segue assim:

 

And he said: Now is there anything I can tell you?"

And I said: I dunno, sir, or

"Yes, Doctor, what do they mean by noigandres?"

And he said: Noigandres!  NOIgandres!

"You know for seex mon’s of my life

"Effery night when I go to bett, I say to myself:

"Noigandres, eh, noigandres,

"Now what the DEFFIL can that mean!

 

A tradução de Grünewald:

 

E ele disse: "Agora, há algo que eu possa lhe falar"

E eu disse: "Não sei senhor", ou

"Sim, Doutor, o que eles querem dizer com noigandres?"

E ele disse: "Noigandres! NOIgandres!

Sabe, durante seis meses

Toda noite quando vou pra cama, digo para mim:

Noigandres, eh, noigandres,

mas que DIABO significa isso!"

 

A de Augusto e Haroldo de Campos, e Décio Pignatari:

 

E ele disse: "Bem, em que posso servi-lo?"

E eu: "Não sei, meu senhor, isto é

Sim, Doutor, o que querem dizer com noigandres?"

E ele disse: "Noigandres! NOIgandres!

Faz seis meses já

Toda noite, qvando fou dormir, digo para mim mesmo:

Noigandres, eh, noigandres,

Mas que DIABO querr dizer isto!"

 

E a minha:

 

E ele disse: Pois bem, o que posso fazer por você?"

E eu disse: Num sei, senhor, ou

"É, doutor, o que eles querem dizer com noigandres?"

E ele disse: Noigandres! NOIgandres!

"Fou te dizerr, faz seis messes agôrra:

toda noite quando eu fou pro cama, me perrgunto:

"Noigandres, eh, noigandres,

"Mas que RRAIOS querr dizerr isso!"

 

Semelhante à dos Campos e Pignatari. O caráter anedótico do caso sucedido depende em parte da notação caricatural do sotaque de um alemão falando a outra língua. Supor que isso não tenha interesse ou seja dispensável é, além de abandonar sem bons motivos um aspecto estilístico, despir o poema de suas matrizes, que são lingüísticas e, aqui, parte indissociável do sentido. Grünewald ainda falha ao traduzir trechos metrificados e rimados, que, na sua versão, ficam desajeitados principalmente se envolvem trocadilhos, ou são simplesmente ignorados.

Já a tradução dos Campos e Décio Pignatari é bastante cuidadosa. Eles especificaram o tipo de trabalho que estavam fazendo logo após a antologia de textos. Deixam claro que não traduzem tanto a melopéia (a música) quanto a fanopéia e a logopéia (as imagens e o jogo de sentido, respectivamente); informam também que procuraram sempre a forma mais concisa, rejeitando "os modos de dizer que alonguem demasiadamente o verso traduzido". Como fiz até agora, vamos ao trecho inicial do Canto I:

 

E descemos então para o navio, e

Quilha contra as ondas, rumo ao mar divino, içamos

Mastro e vela sobre a nave negra,

Ovelhas a bordo, e também nossos corpos

Pesados de pranto, e os ventos da popa

Nos lançaram ao largo, as velas infladas,

Por arte de Circe, a de bela coifa.

Sentados no meio do barco, vento premindo o leme,

A todo pano, singramos até o fim do dia.

 

O esquema aliterativo de Pound foi observado no Canto todo, e, diferente da fama (tantas vezes injusta) das traduções concretistas serem desvios do original, estripulias egóticas, esta aqui demonstra ser bastante atenta ao original, seguindo também a distribuição dos versos. Os poetas do concretismo publicaram uma antologia histórica dos Cantos, na década de 60, pelo Ministério da Educação e Cultura, que chamaram, a pedido do próprio Pound em carta ao grupo, de Cantares (Pound considerava que seu poema estava mais próximo da idéia dos cantares de gesta).  O Canto II, muito complicado pela adaptação que Pound faz do livro III das Metamorfoses de Ovídio — o trecho dos piratas tirrenos que tencionam vender um menino como escravo, menino que é, na verdade, o deus Baco — é traduzido belamente, com os diversos termos náuticos e botânicos acompanhados na variedade exuberante em que aparecem no original. Trocadilhos (e os concretos sempre excelem nesse particular) são sempre notados e reinventados — à exceção de um no Canto IV. Além da invejável perícia técnica, deve-se também mencionar a sensibilidade que tiveram para colecionar Cantos muito representativos do desenho geral.

As poucas divergências que tenho com essa tradução de Cantares são as seguintes: a idéia de linguagem correntia nem sempre é fiel ao espírito do texto de Pound, inúmeras vezes arcaizante (recorre à linguagem isabelina, pedaços do inglês de Chaucer, vocabulário antiquado de toda sorte, etc), com os mais variados propósitos. Por exemplo, neste mesmo Canto I, mais adiante, para dar um aspecto  arcaico ao vocabulário, Pound chega mesmo a criar uma palavra de sabor antigo: pitkin. A tradução dos Campos e Pignatari é fosso. Mais adiante, traduzem fosse também por fosso. A variedade vocabular de Pound é também uma de suas características. Minha tradução para o primeiro é pocilho. Quanto ao outro, concordo com os Campos e Pignatari; o mais são diferenças pontuais ou interpretativas. Além disso é lamentar que não tenham empreendido uma tradução integral, o que teria sido um marco notável dentro da tradução e da poesia brasileira.

Finalmente, à minha tradução do trecho:

 

E descemos então ao navio,

A quilha quebra as ondas, o mar divino fendido, e

Içamos mastro e vela naquela nave negra,

Várias ovelhas a bordo, nós vergados também

Com o peso do pranto, e o vento em popa,

Bom sócio a levar-nos enfunando a lona,

Artes de Circe, deusa de anelado crino.

E no barco nos acomodamos, vento premindo o leme,

E assim a toda vela, varar o dia navegando.

 

Enxertei alguns pedaços da tradução de Odorico Mendes da Odisséia, para o português: "Bom sócio a levar-nos enfunando a lona" e o "anelado crino" são da lavra de Mendes. Minha idéia foi aproveitar soluções interessantes e históricas, e dar mais um nível de leitura para o texto em português. Não segui necessariamente o original palavra a palavra, antes desejando recriar o efeito do poema para o português, observando as várias aliterações, que são o tecido desse texto. "Bore sheeps aboard her, and our bodies also", verso com padrão de aliterações em b, foi transformado em "Várias ovelhas a bordo, nós vergados também", verso com padrão aliterativo em v e b. Adiante no texto mantive a grafia de Pound com k para cimério ("terras kimmerianas"), pois ele provavelmente pretendeu enfatizar, com a consoante velar, o caráter antigo da narrativa; também, como já exemplifiquei, criei pocilho para traduzir pitkin, etc. 

 

A Literatura e as Artes

Não pode ser pouca a desconfiança que sentimos daqueles que falam da literatura como se nada mais acontecesse à volta do evento literário; entretanto, a maior infelicidade que já aconteceu em termos de literatura foi a sua interpretação. Levados por fazer com os textos uma espécie de autópsia, imitando algumas exegeses bizarras dos textos bíblicos, os críticos, historiadores e lingüístas deixaram para nós um cadáver revirado. A monomania pegajosa da sociologia transformou os autores em motivos decorando a porta de entrada da história (principalmente os autores imprestáveis, prediletos dos sociólogos); os lingüístas mutilaram os textos para promover seu balbucio a respeito de morfemas, sintagmas etc.; os historiadores utilizam poetas e escritores como uma desculpa para discursos de ideologia ou ilustração episódica. As exceções não sentirão desconforto com a exposição do plano geral, de cujos métodos elas próprias discordam.

Estarrecido, você pergunta: "Por que ele está nos dizendo isso?" É um alerta sobre o que se vai encontrar por aí, o tipo de coisa em que todos concordam MESMO que haja bons motivos para se dizer que não passa de conversa fiada.

Exemplo:

Todos poderão encontrar quem diga que a fotografia baniu a pintura figurativa do mundo, entre o fim do século dezenove e o começo do vinte. E certamente vão encontrar muitos mais que, por comodidade ou demência, repetem aos que quiserem ouvir. Até Picasso disse isso. Até Picasso (Braque, muito mais esperto nisso, disse: "Você pode fotografar uma paisagem, mas não pode fotografar o que está dentro da minha cabeça", o que poderia encerrar nossa agradabilíssima conversa por aqui).

Uma foto NÃO SUBSTITUI um quadro figurativo, porque um quadro figurativo nunca pretendeu ser registro fiel da natureza — mesmo porque isso não existe, nem mesmo em fotografia. Até os mais inocentes praticantes de uma arte estão suficientemente avisados de que se trata de uma arte. Assim como um fato não substitui uma narrativa. Todas as oficinas do Quattrocento e do Cinquecento italianos comprovam isso: um mestre tinha um discípulo, ensinava tudo que sabe a ele, desde a compreensão do brilho numa gota de água (não pela "cópia do real", que é de uma imbecilidade tacanha, mas pela arte de representar) até debater a obra de um pintor da corte de Florença em termos que não se esgotavam no limiar da imbecilidade de que "parece", ou "não parece", mas nos elementos simbólicos, na cor, na composição, na harmonia entre as partes, aliás, normalmente bastante geométrica como estrutura.

Caravaggio foi considerado vulgar e grosseiro por mostrar traseiros em primeiro plano e pés imundos em suas telas. O grande retratista, ou todo grande pintor, é mais do que um mero reprodutor da matéria bruta, é a reflexão completa e sem teoria sobre uma época — e sob esse ponto de vista são parecidos Henry James, escritor, e James Whistler, pintor. Ou basta olhar os retratos da corte Tudor inglesa, de Holbein.

A idéia pesada e pouco sutil que propõe o contrário ignora todo o pensamento de Da Vinci e ignora tudo que fez parte da inteligência mais destacada da humanidade durante pelo menos seis séculos. Se apagamos nossas pegadas a cada nova geração, o conhecimento, a cultura, não servem mesmo pra nada; afinal, não aprendemos nada, queremos logo nos livrar dessas tralhas. Não é uma idéia, é uma bravata e uma tolice cabeluda. Sobrevive por sua facilidade simplória e pela falta de contraste frontal.

E pelo desconhecimento da refinadíssima arte de Balthus5, deste século que se foi.

        

Is Music Heaven?

A arte da música sempre esteve ligada à da palavra, como eu já devo ter mencionado em algum lugar. É a Provença medieval, é Afonso X e Martim Codax, mas também os rapsodos de Homero, as flautas dos líricos gregos arcaicos, libretistas clássicos e operísticos, uma enxurrada de românticos e valsinhas, Mallarmé & Debussy (A Tarde de um Fauno) e não poucos vanguardistas + experimentalismos sonoros dodecafônicos, seriais ou eletrônicos, além de alguns que transitam pela música popular ou o rock ou o rap. Ezra Pound escreveu semi-óperas. Baudelaire escreveu uma carta a Wagner — o músico germânico que era uma radicalização de Beethoven — dizendo a ele que estava muito agradecido por ter visões de um profundo vermelho purpurino ao ouvir o Crepúsculo dos Deuses.

Pessoas de espírito costumam dizer que esse foi o princípio da pintura abstrata. Eu acho que Baudelaire simplesmente não tinha mais o que fazer, ou estava chapado, ou, melhor ainda, reinterpretou o efeito Doppler do espectro eletromagnético.

 

 

 

 

junho,2005

 

 

Notas

 

 

 

chamaeleonte@yahoo.com