Uma ou duas coisas que poderíamos aprender com a Renascença italiana
Vasari,
no seu belo e importantíssimo livro Le vite dei più eccellenti
pittori, scultori e architetti1,
escreveu que Leonardo da Vinci, numa feira dessas de rua, tendo certa
vez topado com um vendedor de pássaros, ele, da Vinci, muito amigo
desses e dos outros animais (foi um dos mais notórios vegetarianos),
comprou o lote todo e, imediatamente após, abriu as gaiolas para que
todos voassem livres.
Não
devemos, todavia, num gesto de comovido encanto, idealizar um mundo
cheio apenas de grandes atos de humanismo e prodigalidade na Renascença2,
e podemos mesmo lembrar, se quisermos, que para o condottiere
Francesco Sforza, de Milão, o mesmo Leonardo da Vinci aplicou seu
virtuosismo na construção de pavorosos engenhos de guerra, como uma
das primeiras granadas de fragmentação e uns rapapés de enormes lâminas
giratórias, puxado por cavalos, que iam decepando os membros de quem
estivesse nas imediações.
Mas, vejam só: ele também nos deixou um verdadeiramente impressionante Tratado do vôo dos pássaros, apresentando e discutindo as razãos físicas que os mantêm no ar, a ação das asas e do ar entre as penas, a atividade dos músculos, etc.
A
idéia mais importante de cultura é a de que nela deveria estar implicado
o discernimento que bane as péssimas idéias para guardar as ótimas.
Assim, vou tentar compilar uma ou outra das ótimas idéias do fertilíssimo
e inspirador período da Renascença italiana, e veremos como isso se
refletiu numa poesia preciosa ainda inexplicavelmente pouco lida no
Brasil.
Livros & mais livros
Estamos muito distantes do tipo de mentalidade que regeu o exercício da arte da poesia quando os então principados de uma Itália dividida (politicamente) abrigavam em suas cortes poetas eruditos e poliglotas; portanto, não será excessivo lembrar que a Renascença aconteceu, com todo o significado que pôde ter, por causa do conhecimento. E o conhecimento, é justo supor que saibamos, se encontra nos livros. Por exemplo, Baldassare Castiglione, em O Cortesão, escreveu o seguinte a respeito do duque de Urbino, Federico da Montefeltro: "com imensas despesas, reuniu um grande número de magníficos e raros livros gregos, latinos e hebraicos, os quais guarneceu de ouro e prata, considerando que essa fosse a maravilha suprema de seu magnífico palácio"3.
E, de fato, era. Federico foi o maior patrono de iluminadores florentinos da década de 1470, o que não é dizer pouco, porque Mântua, Veneza, Milão, Ferrara, etc. estavam em plena produção de manuscritos iluminados. Mas a construção da biblioteca mencionada por Castiglione, e o peculiar apreço de Federico pela arte e pela cultura o levaram a ultrapassar todos os demais, pois também adquiriu bronzes e pinturas, além de ser um dos mais famosos mecenas do período, havendo certamente um retrato seu de perfil, com um nariz que parece uma falésia, pintado por Piero della Francesca, hoje na Galleria degli Uffizi, em Florença. Ou aquele, que nos importa mais pelo assunto (pintado por Pedro Berruguete), que o retrata vestido de armadura e lendo de um belo fólio encadernado que traz aberto nas mãos. Seria certamente um exemplar de sua biblioteca, que se encontra hoje, como as de vários outros patronos renascentistas das artes, no Vaticano, na qual poderíamos ler os seguintes títulos, dos seguintes autores: Disputationes Camaldulenses, de Cristoforo Landino; a Commedia, de Dante Alighieri; o Canzoniere e os Trionfi, de Petrarca; as Obras Completas, do humanista Poggio Bracciolini; Historia Florentini Populi, de Leonardo Bruni, etc. Finamente ilustrados4.
Mas, como disse, Montefeltro estava longe de ser o único com esse tipo de preocupações: mesmo os violentos condottieri daquelas temíveis estátuas eqüestres organizavam um meio para a cultura quando estabeleciam uma corte. E assim foi com Sigismundo Malatesta; ou com aqueles sujeitos ainda mais brutais e gananciosos, os papas, que se cercavam de quem soubesse alguma coisa. Uma figura se destaca nesse mundo que precisava dos livros, e que precisava, principalmente, que obras fossem copiadas para suas bibliotecas, pois falamos de algo anterior à prensa de tipos móveis de Guttenberg: essa figura é o cartolaio. Um em particular nos servirá aqui, mesmo porque quem for ler sobre o assunto vai encontrá-lo várias vezes, dada sua importância: Vespasiano da Bisticci.
Da Bisticci era então um desses cartolaii, donos de estúdios ou oficinas de manuscritos, estabelecido em Florença, embora atendesse uma clientela que não só se estendia por toda Itália mas que incluía também estrangeiros5; empregou alguns dos maiores iluminadores venezianos e florentinos, e até mesmo o grande Domenico Ghirlandaio trabalhou para ele. Da Bisticci era um homem de muita sorte: ia e vinha entre inimigos mortais sem sofrer um arranhão; ou melhor, era aliás muito bem pago como connaisseur. Nem homens de fé (ou principalmente eles) poderiam se gabar de nada disso. E portanto da Bisticci acabou escrevendo Vite di uomini illustri del secolo XV, um livro no qual fala desses seus tantos conhecidos, pessoas ilustres do século XV (porque o mundo no século XV era a Itália, não era?).
Mas seu trabalho de longe mais importante foi ser o intermediário entre os patronos e diversos copistas, iluminadores, coleções disponíveis de livros raros, além de ser, ele próprio, avaliador de livros e bibliotecas. Detém a fama de ter introduzido as páginas-título, iniciadas com letras douradas; ajudou Montefeltro, de modo definitivo, a compilar e estabelecer aquela sua magnífica biblioteca que vimos alguns parágrafos atrás, com catálogos completos de alguns autores (da Patrologia, por exemplo), biblioteca que da Bisticci estimou ter custado em torno de 30.000 ducados; foi ele a quem Cosimo chamou quando quis dotar sua abadia fiesolana de uma biblioteca. Como Burckhardt escreveu:
recebendo deste (da Bisticci) o conselho de renunciar à compra dos livros disponíveis, uma vez que os que desejava não estavam disponíveis e melhor seria que mandasse copiá-los, ao que Cosme fez um acordo com Vespasiano, que, mediante pagamento diário e o emprego de 45 copistas, entregou-lhe duzentos volumes acabados em 22 meses.
Sua brilhante carreira terminou pouco depois da chegada dos livros impressos de Guttenberg, que começaram a aparecer por volta de 1450, e da Bisticci então se retirou dos negócios para escrever tranqüilamente o volume sobre os ilustres personagens do século XV. Foi, evidentemente, o fim de uma era breve e extremamente significativa do artesanato na confecção dos livros, e do que eles representavam como obra coletiva de trabalho intelectual e artístico.
Neoplatonismo, cultura, analogias
O neoplatonismo é algo de muito sério para a Itália dos séculos XIV a XVI; e podemos dizer que é, ao mesmo tempo, um "plotinismo", porque tomaram muito de Platão através do autor das Enéadas. E devemos, igualmente, entender que, a despeito do conhecimento imenso que muitos tinham dessas matérias naquela época, interpretaram-nas bastante a seu modo, de resto, como sempre se faz, e esse me parece ser o sentido de cultura. Um terreno que se constitui de sedimentações.
Normalmente se aprende a palavra "platônico" apenas em conexão com "amor": é o amor platônico que na escola somos obrigados — sem pensar — a reconhecer nos sonetos de Camões (que para a escola são apenas um punhado de decassílabos infestados dessa coisa vaga, sempre casta, que às vezes aludem ter sido copiada de Petrarca). Não há dúvida, por outro lado, de que o neoplatonismo se servia, por exemplo, dos conceitos apresentados nas discussões sobre o amor no Banquete. O grande Marsilio Ficino, da corte de Cosimo de’ Medici, que foi um dos maiores neoplatônicos com sua Accademia Platonica6, foi mago natural, médico, tradutor erudito, etc, e escreveu o seguinte em sua "Exhortatio ad amorem":
Platão chama o amor uma coisa amarga. E não é sem razão, porque morre quem ama. Orfeu nomeia-o glukúpikron, isto é, agridoce. De fato, o amor é uma morte voluntária. Como é morte, é coisa amarga. Como é voluntária, é doce. Morre, então, alguém que ama. Na verdade, o seu pensamento, esquecido de si, volta-se sempre para o amado. Se não pensa por si, certamente não pensa em si. Por isso, o espírito assim disposto não produz em si mesmo, porque a principal obra do espírito é o próprio pensamento. Quem não produz em si, não existe em si mesmo. Pois, estas duas coisas, o ser e a obra, são iguais entre si. E não há ser sem obra, nem a obra excede o próprio ser. E ninguém produz onde não está, e onde quer que esteja produz. Logo não existe em si o espírito do amante, porque não opera em si mesmo. Se não existe em si, também não vive em si mesmo. Quem não vive está morto. Portanto, está morto em si aquele que ama. Por acaso vive ao menos em outrem? Sem dúvida.7
O que supõe um amor supracorporal. A obra de Ficino é uma das bases do neoplatonismo da Renascença. Mas podemos constatar como esses conceitos em particular se encontram em obras anteriores, como num soneto de Petrarca, no qual escreve Guerra è il mio stato d’ira e di duol piena/E sol di lei pensando ho qualche pace./ Così sol d’una chiara fonte viva/ Move ‘l dolce l’amaro ond’ io mi pasco, isto é, "Vivo em estado de guerra, cheio de fúria e dor/E só pensando nela há alguma paz./ Assim, de uma só clara fonte viva/ Mana o doce e o amargo de onde bebo."
O
platonismo e o neoplatonismo são muito mais do que alcunhas de manual:
funcionam também como núcleos de conhecimento e como organizadores
da percepção que prescrevem. Platão propôs uma idéia muito útil de
poesia que foi complementada pela mente sistemática de Aristóteles;
escreveu sobre teoria da harmonia no Timeu, a partir de Pitágoras,
ampliando o espectro de entendimento do conceito de música (o que
ainda significava escrever também sobre matemática e geometria)8,
etc. O platonismo e sucedâneos são, enfim, uma cosmologia cujo objetivo
é levar ao uno, ou o todo, numa concepção de sucessivas
associações do micro ao macro. Uma religião? Nem tanto. Mais uma espécie
de ética combinada a curiosidade, com baixa incidência de preconceitos
investigativos.
O chamado noûs neoplatônico, por exemplo, que em latim normalmente fica mens ("mente"), já se encontra em poesia italiana naquela velha canção de Guido Guinizelli (il primo Guido), em que escreve: "Splende nell’inteligenza del cielo/ Deo Creator", pois percebam como o vocábulo "inteligência" se presta justamente a traduzir a ligação entre as coisas, e não significa "intelectual", essa palavra pobre mas esnobe que sempre cedemos aos outros com algum desfavor10. "Inteligência" está associada analogicamente, tanto na canção de Guinizelli (e na tradição stilnuovista), à luz e aos sentidos, além, evidentemente, à capacidade de apreensão intelectual. Percepção, apreensão, inteligência: perceber, captar, associar.
Por isso, também, há um hábito equívoco de encontrar na poesia Renascença uma poesia dos sentidos, significando com isso superficial. Equívoco? Ah, claro, afinal se você escreve sobre coisas e não sobre ideais balofos, cheios de vento dentro, você é um sensual, alheio à "profundidade". Evidentemente a literatura renascentista herdou, de certa forma, a infusão de amor, experiência e saber que vinha da figura da donna ideale do stilnuovismo, e anteriormente dos poemas dos sicilianos do século XIII, e das canções da Provença com o fin’amors (no Comento, de Lorenzo de’ Medici, os provençais, os sicilianos, e Dante, Petrarca, Boccaccio e Guido Cavalcanti são mencionados nas partes de abertura, escritas para provar as qualidades do intuito, da linguagem e da forma, respectivamente, ao seu exercício da poesia). E não só.
A poesia da Renascença está impregnada das formas do pensamento complexo da época, mesmo porque muitos dos poetas eram os chamados poetas-filólogos, eruditos e conhecedores de várias línguas, cortesãos cercados de pensadores de diversas outras áreas do conhecimento com os quais, espantosamente — e é provável que pela última vez na História — falavam uma mesma língua. O que não impediu, a partir do século XVI, que a prevenção da sociedade (e particularmente dos religiosos) contra esses tipos fizesse o humanista ir desaparecendo, virando uma espécie de fantasma da cultura toda vez que nos esforçamos para imaginar um ideal de civilização letrada.
Na Renascença forma-se portanto um conjunto de conhecimentos que une o platonismo e suas diversas camadas de interpretação aplicadas durante séculos; religiosidade e moral quase pagãs; os textos clássicos greco-latinos, hebraicos e por vezes muçulmanos, que vieram da queda de Constantinopla; complexas tradições de ocultismo e alquimia, indicando um modo simbólico e mesmo mágico de pensamento; novas percepções de ciência, medicina, arquitetura e urbanismo, o sentido de perspectiva com pontos de fuga na arte, etc. Costumam dizer que era uma época da razão, mas isso é pura preguiça mental ou estupidez: eles acreditavam em coisas que podem (ou não) nos parecer chocantes. Da Vinci achava que o canal seminal tinha ligação direta com o cérebro; a astrologia era considerada uma ciência, assim como muitos consultavam necromantes e demais futurólogos. E etc.
Isso é para desbotar nossa admiração por aqueles homens e mulheres? De modo algum. Pessoalmente, sou mais inclinado a rir do cientificismo abstrato e idiota de hoje do que da legítima busca de conhecimento que associava empirismo e mística: ao fazer soar um acorde num alaúde, consideravam a música das esferas, ao descrever o amor num verso, o integravam à filosofia e à tradição poética, ao representar um corpo com tinta, tinham em mente o empirismo anatômico (na ilustração para o De Divina Proportione, do amigo Luca Pacioli, Da Vinci inscreve o homem no círculo e no quadrado segundo a seção dourada e a projeção da spira mirabilis, como exemplo de uma mística que se mistura ao empirismo12), ao estudar os astros em suas órbitas, propunham também que estávamos analogicamente integrados a eles, quando discutiam as qualidades de um homem ou uma mulher, os consideravam como um todo físico e espiritual13. Mesmo que muitas vezes dentro dos limites do diletantismo, não importa: era uma forma mais abrangente e generosa de vida mental, e que se combinava mais facilmente com a vida, por assim dizer, quotidiana.
E é por isso, aliás, que o conhecimento humano estacionou e em alguns casos retrocede: estamos diante da urgência de uma nova organização do saber, e é claro que se não fôssemos tão burros, ignorantes e mesquinhos iríamos buscar algum tipo de inspiração naqueles séculos.
Perdão, temos de servir à especialização exigida pelo setor de serviços no mercado de trabalho, não temos tempo para brincar de fazer da humanidade algo menos medíocre. Educação é uma foto de crianças sorrindo, com uniforme, filmadas em câmera lenta para propaganda eleitoral.
Eu sempre me confundo nessas partes. Desculpem, continuamos.
A poesia da Renascença italiana: o soneto
Não seria possível cobrir todo o escopo do título nesta Officina sem que se emendasse nele o pequenino subtítulo. E mesmo isso daria um verdadeiro trabalho. Podemos então optar pelo detalhe, esperando que, assim, ao modo das ilustrações marginais dos velhos manuscritos, ilumine-se de certa forma o grande contingente de possibilidades.
Percorrendo ensaios, antologias de verso, edições que colecionam todos os poemas de um determinado poeta, encontramos o onipresente comentário de que na Renascença o soneto era "petrarqueano", e com isso normalmente se quer dizer que se trata de coisa menor, derivativa. É uma besteira: a indiscriminada comparação se justificaria apenas pelo fato de que dividem o uso de uma mesma forma, o soneto, e pelo fato de os sonetistas da Renascença lerem Petrarca com apreço (como aliás o faziam com outros sonetistas, como Cavalcanti, Dante Alighieri).
Os sonetos de Petrarca são sempre de raggionamenti, do pensar em si mesmo o tempo todo, da constante invasão pronominal do io. São, além do mais, do tipo exportação, por terem, como dizem, estabelecido a forma definitiva do soneto, seu esquema de rimas, seu número de sílabas, etc. Nesse sentido, Petrarca é antes responsável por ter congelado a forma do que por ser um importante cultor dela (afinal, naturalmente aquilo que se cultiva cresce, se desdobra, ganha ramificações e não o contrário). Se vê mais a estilística de Petrarca em Camões e em outros poetas europeus do que nos sonetistas italianos da Renascença.
Em poetas como Pietro Bembo, Matteo Maria Boiardo e Lorenzo de’ Medici — escolhidos como exemplo aqui — a vida exterior domina o soneto com suas qualidades de experiência sensorial, que facilmente se transforma num núcleo simbólico de apreensão das paixões e do pensamento, naquela época ainda não cindidos por nenhuma oposição romântica barata: são sensuais, nesse sentido de descrever a percepção sensorial; não falam o tempo todo de si, mas das coisas. São, fora do aspecto rigorosamente técnico dos quatorze versos rimados, o contrário de Petrarca. Eles sabiam disso? Talvez não. Talvez pensassem escrever o soneto como haviam aprendido com o próprio Petrarca, com Cavalcanti e com Dante. Vejamos o que nos diz Lorenzo de’ Medici, no Comento, sobre esse pequeno som.
É sentença de Platão que narrar breve e lucidamente muitas coisas não só parece admirável entre os homens, mas coisa quase divina. A brevidade do soneto não comporta sequer uma palavra em vão; e o verdadeiro assunto e matéria dos sonetos, por esse motivo, devem ser algumas sentenças agudas e gentis, narradas de modo conciso e restritas a poucos versos, fugindo à obscuridade e à dureza. Há grande semelhança e conformidade de estilo, dessa maneira, com o epigrama, quanto à agudeza da matéria e à destreza do estilo, mas o soneto é digno e capaz de sentenças mais graves, tornando-se, então, um tanto mais difícil. (...) As canções me parecem ter grande semelhança com a elegia (...) e por terem maior espaço em que possam vagar, não reputo tão difíceis quanto o soneto. E isso se pode provar facilmente com a experiência, pois compus sonetos e fiquei restrito a matérias sutis e específicas, fugindo com grande dificuldade do tom obscuro e da dureza do estilo (...).14
Etc. Lorenzo conclui que o soneto é "difficilimo", haja vista a boa quantidade de razões expostas e porque, diferente do latim, o "volgare" (o italiano) obriga, antes por sua natureza que por outras regras, a servir a um ritmo e a rimas peculiares. O ritmo se complicaria porque é possível, em italiano, compor sentenças hendecassilábicas (em italiano conta-se a sílaba átona) sem que haja "suono di versi". Curioso notar que ele menciona a maior dificuldade estabelecida pelo soneto em relação à canção, porque aquele não deixa espaço para o poeta vagar (daí a semelhança com a brevidade do epigrama). E a experiência sonora da métrica quantitativa ainda não era coisa descartável: era preciso ao menos mencioná-la.
Jacob Burckhardt, em seu variado, bem escrito e muito importante ensaio chamado A Cultura do Renascimento na Itália, se reporta a esse detalhe, já tendo percebido em seu século XIX o que seria impossível do ponto de vista de alguém no século XIV ou mesmo XV, ou seja, que muitos se utilizaram do soneto para "ali deitarem — sem qualquer seriedade maior ou necessidade — suas reminiscências e sua fútil lengalenga. É por essa razão que há mais sonetos insignificantes e ruins do que bons". Mas dizia também que
Apesar disso, o soneto nos parece uma enorme bênção para a poesia italiana, porque os mestres de primeira categoria, (...) elevando o soneto à condição de principal forma lírica, obrigaram muitos outros poetas, de talento elevado, ainda que limitado — poetas que, do contrário, teriam sucumbido a uma lírica difusa — a concentrarem seus sentimentos.15
Isto é, forçou os medíocres a adquirir um sentido de concisão e forma. No entanto, também Burckhardt, como inúmeros outros (Massimo Bontempelli, Momigliano, Panzini, etc), embarca na comparação muito estrita com Petrarca. Para mim é claro que o soneto da Renascença deve muito mais ao uso que Boccaccio fez dessa forma do que a qualquer outro. Boccaccio levou o soneto para fora dos aposentos abstratos da cabeça do poeta, e direto para as coisas sob a luz do sol. É basicamente um contemporâneo de Petrarca (apenas nove anos mais novo), e evidentemente mais conhecido fora da Itália pelo Decameron. São seus sonetos, como "Intorn’ ad una fonte, in un pratello" (Junto a uma fonte, numa campina) e "Vetro son fatti i fiumi, ed i ruscelli" (Os rios e os regatos viram vidro), que se assemelham mais ao estilo de escrita dos poetas italianos do Renascimento, assim como o tipo de ornamento e figuras mitológicas que se vêem num poema mais longo e narrativo de Giovanni Boccaccio, o Ninfale Fiesolano, deixariam marcas encontráveis na poesia de Angelo Poliziano, se lemos, por exemplo, "Stanze per la Giostra del Magnifico Giuliano di Piero de’ Medici" (Estrofes para a Justa do Magnífico Giuliano de’ Medici), Livro I, estrofe CXI:
Vien sovra un carro, d'ellera e di pampino
coverto Bacco, il qual duo tigri guidono,
e con lui par che l'alta arena stampino
Satiri e Bacche, e con voci alte gridono:
quel si vede ondeggiar, quei par che 'nciampino,
quel con un cembol bee, quelli altri ridono;
qual fa d'un corno e qual delle man ciotola,
quale ha preso una ninfa e qual si ruotola.16
Vem sobre um carro, de hera e de pâmpano
coberto Baco, que dois tigres guiam,
e com ele para estampar a alta areia
Sátiros e Bacantes, e com vozes altas gritam:
vemos um que cambaleia, aquelas parecem tropeçar,
este de um címbalo bebe, os outros riem,
um faz de copo um corno, outro as mãos,
um agarrou uma ninfa, um outro rola.
Há o recurso a figuras mitológicas com riqueza descritiva, de modo a aproximar o mundo muito palpável da natureza daquele mundo talvez nem tanto de sua manifestação personificada. Muitos dizem que se trata de ornamento apenas, mas eu suponho que os chamados "mitos" eram vistos como manifestações bastante coerentes da natureza, e já na Renascença carregavam também vasto aparato simbólico e alegórico. Nos Três Livros sobre Filosofia Oculta, de Cornelius Agrippa, se propõe a ligação entre os diversos aspectos da natureza (animais, plantas, astronomia, cores) e os deuses, por exemplo. Assim como a velocidade da narrativa mitológica e fantástica associada a misturas de humor e tragédia, como encontramos exemplarmente no Orlando Furioso, de Ludovico Ariosto — mas também em aplicações pontuais de técnica e estilo no soneto —, vem da leitura das Metamorfoses, de Ovídio, um dos principais modelos de estilo, e eu diria, de pensamento. É um modo mágico e, diga-se de passagem, muito pouco cristão de se associar as coisas.
Mas não vamos tão longe, é claro: escrevi tudo isso porque seria bastante razoável deslocar o excesso de importância atribuída a Petrarca, como base para uma sonetística renascentista, para Giovanni Boccaccio, estilisticamente muito mais próximo dessa poesia, de onde certamente viriam comparações bem mais interessantes.
E nelas não poderiam deixar passar despercebido o fato de que Boccaccio, diferente da maioria dos outros poetas, tinha uma experiência peculiar de observação do dado exterior, porque escreveu as novelas do Decameron como as conhecemos: narrativas exemplares da construção de um mundo para os olhos da mente. Sua habilidade como prosador é de muita importância notar aqui: muito do que lhe é peculiar, assinalado em sua poesia, se deve a esse tipo de observação de prosador, necessariamente obrigado a notar o mundo à sua volta como material para dizer o que precisa.
Enfim: nunca é tarde para se rever posições quanto à arte. Um compositor como Vivaldi, hoje até em propaganda de sabonete, só recuperou seu lugar de direito no começo do século XX. Mesmo uma figura emblemática da Renascença, como Sandro Botticelli, veio a ocupar esse posto apenas no fim do século XIX, com os pré-rafaelitas ingleses que fizeram dele um mestre e com o belo livro de Walter Pater, The Renaissance, que já começava a dar sinais do fim da crítica romântica. Não era sem tempo.
Um soneto líquido de Matteo Maria Boiardo
Quando a poesia do Renascimento está no seu melhor, descobrimos nela qualidades atemporais de prazer estético (a sátira de Ariosto e Pulci; o macarrônico de Folengo; sonetos impecáveis de Pietro Bembo, Lorenzo de’ Medici, Matteo Maria Boiardo; a paganíssima capacidade de limpidez descritiva de Poliziano, etc); quando está no seu pior (muitas estrofes exclusivamente panegíricas de La Giostra, de Poliziano; muitos sonetos excessivamente petrarquistas, isto é, metafísicos e ocos, como alguns de Giovanni della Casa; épicos enfadonhos, etc), sequer conseguimos entender como tiveram coragem de escrevê-la.
No entanto, chamo a atenção para certos detalhes, dignos da atenção daqueles leitores curiosos, sempre ávidos por leitura qualitativa, que encontramos por exemplo neste soneto de Matteo Maria Boiardo, conde de Scandiano:
Il canto de li augei di frunda in frunda
E lo odorato vento per li fiori
E lo schiarir di lucidi liquori,
Che rendon nostra vita piú iucunda,
Son perché la natura e il ciel secunda
Costei, che vuol che ‘l mondo se inamori;
Cosí di dolce voce e dolci odori
L’aer, la terra è già ripiena e l’unda.
Dovunque e passi move, o gira il viso,
Fiamegia un’ spirto sí vivo d’amore
Che avanti a la stagione el caldo mena.
Al suo dolce guardare, al dolce riso
L’erba vien verde e colorito il fiore,
E il mar se aqueta e il ciel se raserena.17
O canto das aves de fronde em fronde
E o odorífero vento entre as flores
E o clarear de lúcidos licores
A que nosso olhar alegre responde,
São porque a natureza e o céu em ronda
Com a que ao mundo traz gentis amores,
Assim, de voz bem doce e bons odores
O ar e a terra põem repletos, e as ondas.
Onde se torna o rosto ou toca o piso,
Flameja um espírito vivo de amor,
Com que antes da estação calor acena.
Ao seu doce olhar e ao doce sorriso
Erva vem verde, colorida a flor,
E o mar se aquieta e o céu se resserena.
No original italiano, e não exatamente na minha tradução para a comodidade dos leitores, deve-se perceber o trabalho sério que Boiardo teve em compor a sonoridade mais agradável do mundo para forjar em tal forma um retrato da beleza que lhe inspirava a mulher, ou aquela mulher específica que Carlo Steiner leva cinqüenta fastidiosas páginas de sua introdução biografista caceteando de poema a poema: Antonia Caprara. Isso nos interessa? De passagem. No começo de cada soneto de seu cancioneiro, Boiardo inscreveu uma das letras do nome da bela Antonia (o soneto em questão, como vemos no original italiano, é o "i" de seu nome). Naquelas didascálias que antecedem o poema normalmente vem escrito algo como: "Ogni bellezza, ogni soavità, procede dalla virtuosa bellezza di lei", isto é, Toda beleza, toda suavidade, procede da virtuosa beleza dela; ou "S’allegra natura ove madonna appare", A natureza se alegra onde minha amada aparece, etc.
Mas dizia do engenho do poema: a sonoridade delicadamente se articula em várias seqüências da consoante líquida "l", que nos faz a língua subir ao palato portanto uma porção de vezes, saboreando as também consideráveis seqüências de "i", rápidas e sonoras, que nos trazem à memória a alegria e a vivacidade da juventude e do tempo que descreve: luminoso, solar. Percebam como isso está escrito no poema não só a partir da leitura do significado, mas no próprio artesanato da sonoridade. É quase que um soneto líquido e fluido, realçado pelo brilho dos "i". É um dos melhores que conheço.
Também interessa muito ver como se diferencia da tradição ibérica de poesia em geral, e do soneto em particular. Não é um poema em que forçosamente precisamos nos apiedar do pobre e maltratado autor (acontecerá em outros poemas de Boiardo, claro), mas no qual flagramos boa poesia que não se faz a partir de miséria humana; é necessário notar isso de vez em quando, porque as pessoas costumam pensar que um poeta só é de fato um poeta se é um desgraçado, se é alguém que alguém que vai, sem remédio melhor, cantar sua dores infinitas. Não é o caso. E nisso se diferencia da tradição ibérica de grandes sofredores, de requebros, queixumes e cuitados.
O soneto é basicamente um reduto de concisa e artificiosa argumentação; sua estrutura leva ao desenrolar, como vimos já com Lorenzo de’ Medici, de alguma agudeza; tem a virtude de se fazer memorizar com razoável facilidade; guarda parentesco com formas mais antigas e mais cantáveis, como a canção trovadoresca, etc. No século XVII isso atingiria quase um paroxismo de agudeza (sem querer, com isso, parecer eu mesmo um deles), e poetas como Lord Rochester tirariam sarro às custas desse formato. Rochester diz que os italianos e seus sonetos só sabem rimar amore, cuore, aludindo aos macetes intragáveis e à moda que levou, como lemos no livro de Burckhardt, um monte de inúteis a escrever qualquer tolice em forma de soneto.
Veríamos peças de de’ Medici e de Bembo. Mas isso não acabaria mais; ficará para um "Renascença II" nestas páginas, quem sabe?
Voltaire
(Poesia, tradução e a Épitre XLII)
Quando Voltaire escreveu suas centenas de Épitres (Epístolas), estava-se no século dezoito, e os cavalheiros usavam perucas, redingotes apertados na cintura com coletes de brocados, mangas rendadas e talco na cara, às vezes enfeitada de uma elegante e maliciosa pinta falsa, colada no rosto. Voltaire havia tentado sua mão na poesia épica, tendo escrito a Henriade, poema desanimador, de que se vingaria na voz de Pococuranté, o nobre pouco cuidadoso que detesta poesia épica, no Candide; e hoje, enfim, a maioria das pessoas que se recorda de alguma coisa se recorda dele como polemista, como prosador hábil e inovador, e os menos preconceituosos o chamam filósofo — depois que a filosofia francesa se germanizou esse adjetivo se complicou muito, de tal forma que agora só "teóricos sérios", isto é, tagarelas abstratos que propõem sistemas abarcando toda a experiência cognitiva, ou todo o espectro da linguagem humana, etc., merecem a alcunha.
Voltaire é visto comumente como um homem que se bateu contra a "superstição", e a clareza de sua prosa se construiu com base em modelos ingleses, quer dizer, do pragmatismo inglês, com que Voltaire conviveu durante o exílio: isso é claro, mas insuficiente. E ele passou um bom tempo pensando a respeito de temas ingleses, o que veio a se chamar Cartas Inglesas ou Cartas Filosóficas. Nelas qualquer um pode constatar a admiração que homens como Locke e Newton lhe causavam (assim como desprezo por Leibniz20), ou como reproduzia, por outro lado, os juízos continentais da época a respeito da obra de Shakespeare, que era bela, mas bárbara, ignorante das regras do bom teatro21, que o próprio Voltaire considerava saber escrever. E nos comentários que redige para suas traduções de poetas ingleses podemos encontrar uma concepção interessante sobre essa atividade, comentários que podem tanto soar como uma afetação de modéstia, uma captatio benevolentia, como a idéia simples e comum que hierarquiza a tradução abaixo da escrita original, ou como uma reles desculpa, como quando escreve, ao anunciar a tradução de um trecho de monólogo de Hamlet:
Perdoai a cópia em favor do original e lembrai-vos, sempre, quando virdes uma tradução, que vedes uma fraca estampa de um belo quadro.22
Numa comparação ainda válida atualmente, para quem quer que tenha comparado as melhores reproduções de telas com as pinturas originais. E diz mais, referindo ainda a mesma tradução: "Não acrediteis que traduzi o inglês palavra por palavra. Infelizes os que fazem traduções literais, que traduzindo cada palavra enervam o sentido! É nessa hora que se pode dizer que a letra mata e o espírito vivifica."Isso é pouca ou nenhuma modificação — talvez apenas com relação à idéia de um espírito do texto que é necessário captar — do que diz Horácio na Epistula ad Pisones, a chamada, desde Quintiliano, Arte Poética: nec verbo verbum curabis reddere fidus interpres, isto é, "nem vá traduzir palavra por palavra, tradutor fiel". Todos os comentários que faz têm, no fundo, este sentido: a tradução é uma infelicidade necessária, a que se concede, pela natureza própria do negócio, razoável liberdade com as palavras. Diante da tradução de um poema de Lord Rochester25, Voltaire acrescenta: "a versificação francesa não consegue ser fiel à inglesa; as decências de nossa língua deixam escapar a licença impetuosa do estilo inglês."
Voltaire associa a licença impetuosa, o estilo bárbaro, à língua inglesa; há hoje historiadores ingleses que atribuem a origem do Iluminismo e do Enciclopedismo aos admiráveis ingleses bárbaros que nem se consideravam paladinos da Razão, mas, agora sabemos bem, o foram. E é por isso, também, que o Romantismo foi buscar em autores emblemáticos como Shakespeare uma oposição bastante nítida ao rococó, o muro neoclássico. Sem derrubar o sistema anterior (as coisas, de fato, nunca acabam, mas se transformam: essa é a bigorna onde eu bato) geraram um outro sistema repleto de convenções alternativas que, se lembro bem, já apresentei nessas infindáveis oficinas.
E Voltaire escreveu também suas Epístolas em verso, que não são exatamente sua Correspondência, em prosa. Qual é a diferença?
A diferença é que a correspondência, escrita em agradável prosa francesa, serve para assuntos imediatos, como procurar a proteção de um poderoso, o dinheiro necessário para publicar suas obras, corte amorosa, fofocas entre amigos, pragas sobre os já numerosos inimigos que faz até fora da França, etc. Na correspondência não há o personagem Voltaire (ce rusé personage), mas o homem inteligente, de carne e osso — vaidoso mas prudente, cheio de atribulações, buscando sobreviver num meio, como sempre, hostil ao pensamento —, e seu imenso volume de texto nos faz acreditar que não era de fato concebida como obra para publicação.
As epístolas, ao contrário, escritas em verso, e tomando como assunto quase que a mesma porção de coisas, nos faz ver nitidamente a persona pública de Voltaire e a construção de poses, como a mais cultivada talvez, a do sarcasmo — como veremos na tradução da "Epístola XLII". São poemas em que o detalhe inserido faz sempre parte do organismo do texto, servindo não precisamente como peça autobiográfica (é sempre arriscado, quando não totalmente absurdo, presumir esse tipo de coisa de uma obra), mas como quase vers de société. E por isso Voltaire escreveu bem nesse gênero e não na poesia épica.
A poesia épica era mais um dos enfeites, mais um dos badulaques postiços do século XVIII, como a poesia pastoral. Se você reparar, perceberá que Laclos, que escreveu um ótimo romance epistolar (Les Liaisons Dangereuses, "As Ligações Perigosas"), também se deu bem nisso. A palavra-chave é a epístola, ou a carta. A arte de escrever cartas atingiu seu ápice no afetado século XVIII, o século do boudoir, da decadência final da aristocracia, do paroxismo do refinamento. Para eles, o veículo natural, se se pode dizer uma coisa tão contraditória, era a epístola, um artigo íntimo, mas também reduto de todo um conjunto de artifícios retóricos de persuasão, sedução e estilo.
Qual era a ocasião, portanto, desta epístola? Um casamento. Um casamento a acontecer no interior (Montjeu), a respeito do qual Voltaire confessa a seu amigo Cideville, em carta de 31 de março de 1734, "ter metido na cabeça há tempos casar o senhor duque de Richelieu com a madmoiselle de Guise. Conduzi esse negócio como uma intriga de comédia. O desenlace se dará em Montjeu, perto de Autun." Depois, a Formont, em 25 de abril: "Eu, que não queria deixar Paris senão por Rouen! mas aconteceu que me meti a casar o sr. de Richelieu com a senhorita de Guise, e foi preciso, segundo as regras, ficar para as núpcias. Então eu percorri oitenta léguas para ver um homem se deitar com uma mulher."
E acabou escrevendo isto, embora tenha dito também que "faria o casamento, mas não faria versos". Vamos à epístola XLII. Boa leitura.
EPÍSTOLA XLII
A MADMOISELLE DE GUISE,
sobre seu casamento com o Duque de Richelieu.
Abril, 1734
Um padre, um sim, termos latinos,
Resolvem os vossos destinos;28
Celebrando num vilarejo,
Nesta capela de Montjeu,
Vos meteis, cristã em sobejo,
A dormir com o Richelieu,
Richelieu, ave de realejo,
Que vai jurar ao santo laço
Ser para sempre fiel e sábio.
Eu desconfio do baraço;
Vosso olhar, de apelo tão fácil,
Garante mais que aqueles lábios
Jurando a Deus a cada passo.
Mas vós, minha senhora duquesa,
Quando voltardes a Paris,
Sabeis quanto marido infeliz
Vai lamentar vossa aspereza?
Os muitos cornos que ele fez
Vão perder convosco a esperança;
E dirão, da vossa altivez:
"Deus que me desse essa vingança!"
Sabeis bem que eles têm razão,
E que é bom punir o culpado:
A lei alegre de talião
É a que tem menos de errado.
O quê! Convencer-vos não pude?
Vossa lição me calou fundo!
Ah! esse é o tipo de virtude
Que enraivece a todo mundo!
Como pode o vosso prazer
Ter só Richelieu como mestre?
Será então que ele não vai ser
Aquilo que tanto merece?
Sede então sábia se é preciso;
Que essa seja a vossa quimera:
Com tais talentos num sorriso,
Um só defeito já se espera.
Nessa lida nobre e sofrível
De guardar ao nome a honraria,
Eu só vos desejo alegria:
Mas essa é a palavra impossível.
ÉPITRE XLII
Á MADMOISELLE DE GUISE,
sur son mariage avec le duc de Richelieu.
Aprile, 1734
Un prêtre, un oui, trois mots latins,
à jamais fixent vos destins;
et le célébrant d' un village,
dans la chapelle de Montjeu,
très-chrétiennement vous engage
à coucher avec Richelieu,
avec Richelieu, ce volage,
qui va jurer par ce saint noeud
d' être toujours fidèle et sage.
Nous nous en défions un peu;
et vos grands yeux noirs, pleins de feu,
nous rassurent bien davantage
que les serments qu' il fait à Dieu.
Mais vous, madame la duchesse,
quand vous reviendrez à Paris,
songez-vous combien de maris
viendront se plaindre à votre altesse?
Ces nombreux cocus qu' il a faits
ont mis en vous leur espérance;
ils diront, voyant vos attraits:
"dieux ! Quel plaisir que la vengeance! "
vous sentez bien qu' ils ont raison,
et qu' il faut punir le coupable:
l' heureuse loi du talion
est des lois la plus équitable.
Quoi! Votre coeur n' est point rendu?
Votre sévérité me gronde!
Ah! Quelle espèce de vertu
qui fait enrager tout le monde!
Faut-il donc que de vos appas
Richelieu soit l' unique maître?
Est-il dit qu' il ne sera pas
ce qu' il a tant mérité d' être?
Soyez donc sage, s' il le faut;
que ce soit là votre chimère:
avec tous les talents de plaire,
il faut bien avoir un défaut.
Dans cet emploi noble et pénible
de garder ce qu' on nomme honneur,
je vous souhaite un vrai bonheur:
mais voilà la chose impossible.
dezembro, 2005