mas
tenho técnica só dentro da técnica
.......Um
dia desses me questionaram sobre o porquê de eu enfatizar
aspectos técnicos da poesia. E a criatividade? perguntaram.
.......A
criatividade.
.......Palavras
como essa acabam sendo apropriadas por quem não sabe
o que diz (não o meu caro interlocutor, evidentemente)
e vociferadas sob condições que atendem a outros
interesses. "Você, um purista" — todos
pensam então. Mas permitam que eu diga: não é
um ataque de purismo. Há interpretações
imprestáveis da palavra quando se trata de uma arte,
e com isso eu quero implicar todo tipo de arte. Por
quê?
.......A
criatividade, assim como o ócio e outras coisas saudáveis,
foi transportada para o jargão publicitário e
dos negócios, onde se deformou, tornando-se sinônimo
de "estalo". É, o estalo: um cavalheiro senta
diante de uma coisa qualquer, sozinho ou com seus colegas, tem
um toró de idéias até que um estalo lhe
indica qual bordão monossilábico irá prender
a mente letárgica do consumidor; ou qual será
a melhor maneira de extorquir mais dinheiro dos associados de
um banco, dos contribuintes, etc.
.......Por
outro lado, a criatividade também se colou a "espontâneo":
o criativo é o espontâneo, o sincero, o boneco
maquinalmente ativado pela inspiração. O poeta
criativo é aquele que não depende de penduricalhos
técnicos, é um campeão da vida, e por aí
vai o caminho da fé cega, ou da ficção
romântica sobre a poesia. É bastante claro para
todos, não aprecio mais a palavra "criatividade".
É uma palavra gasta, um trapo do que já foi roupa.
Mas concordo que podem ter pensado que, portanto, defendo o
tecnicismo, que resulta em outro tipo maquinal.
.......A
técnica que se faz por si mesma é banal como o
"criativo": são dois tipos atacados de manias.
Técnica, liberdade, criatividade, ou o que mais se quiser
listar, são uma coisa única e inextricável.
A poesia é a forma do poema, que é, por sua vez,
o conteúdo do poema.
.......A
técnica seria como uma segunda natureza, como intenso
aprendizado de algo a que não se pode escapar. Obviamente,
o poeta não vai se matricular numa escola (que, felizmente,
não existe), mas é bastante natural que seja um
leitor compulsivo e peculiar, como um instrumentista que, antes
de tudo, aprende a tocar de ouvido pelo simples gosto da coisa.
As formas, para o artista, vêm com sentido embutido e
ele não pára para se perguntar sobre isso: percebe
a forma como sentido. De qualquer maneira,
técnica não tem nada a ver com a tecnocracia,
cuja mentalidade é repetitiva, irrefletida, direcionada
a amealhar poder através de expedientes técnicos:
o caríssimo Bill Gates, por exemplo, ou o saudoso Bob
Fields.
.......Por
isso as pessoas ligadas de um modo ou outro a alguma arte sentem
um frio na espinha quando se ventila a palavra "técnica";
como se numa sala cheia de senhoras das ligas católicas
alguém começasse a ler em voz alta um capítulo
do Naked Lunch, de William Burroughs.
.......Ninguém
(ou quase ninguém) acha mesmo que Velázquez era
míope e, portanto, pintava aquelas manchas: há
uma técnica para isso, pincéis longos, a idéia
da pintura como uma arte (ou seja, de perto, você tem
a tinta, de longe, a figura; o contrário da arte do miniaturista),
etc. É claro que, para ser melhor compreendido, Velázquez
teria de esperar uns duzentos e poucos anos até que os
impressionistas o elegessem "o pintor", alguém
que havia pintado um nexo entre aquilo que se vê e aquilo
que se faz. Com a poesia é o mesmo.
.......Há
críticos que conseguem singularizar uma "ourivesaria"
de uma "mensagem", cada qual para um lado, como fazemos
com maus parnasianos; mas é uma tentativa de desmascarar
o mágico sem saber reproduzir a mágica.
A própria concepção de que um artista cogita
certa mensagem é esquiva: ele não é um
pregador religioso, não quer converter multidões
a determinado credo. Se quiser "passar uma mensagem",
poderá sempre agarrar um livro grosso, memorizar algumas
palavras e berrar nas praças para um público de
curiosos.
Exemplos
.......Mencionei
de raspão lá em cima os românticos, muito
oportunos.
.......Byron
foi imitado em todos os países que conheceram Romantismo,
o spleen byroniano está em Álvares de
Azevedo e em Baudelaire; a invenção do tédio;
a afetação do gênio; do incompreendido;
do demônio; a tuberculose; as virgens; o seio palpitante;
a liberdade; desmaios e mais um sem-número de tiques.
É possível, com alguns anos de paciência
e pesquisa, encontrar um bom número de lugares-comuns
na literatura romântica, que releu o mito de Prometeu
como o mito da liberdade e do gênio isolado. Ou seja,
há uma deliberada afetação de genialidade
e espontaneidade, conseguida pelo uso de lugares-comuns e pela
impressão causada por um pacto com o leitor que propõe,
digamos, uma idéia de libertação. No que
seria possível pensar uma considerável má-fé
da parte deste escritor, cheio de uma bile negra que precisa
aplacar de alguma forma. Mas não se trata de uma invectiva
sobre as convenções românticas, senão
de uma sugestão de que, para que a arte seja reconhecida
como isto ou aquilo, é necessário partir de certas
convenções, mesmo que seja para contrariar ou
esgarçá-las.
.......A
lírica como poesia do "Eu", freqüentemente
atribuindo-se a isso um sentido emocional epidérmico,
data do Romantismo (e de Fichte, segundo o egótico Hegel).
Data da nomeação de um "Eu" que é
a substância, o que, em tese, prescreve sinceridade, apelos
afetivos e uma vida desventurada ou descabelada. É quando
a poesia começa a ter relação com uma atitude
rebelde por parte do poeta. Quando chegamos a Baudelaire, temos
um romântico tardio que formaliza o fim do pacto entre
a linguagem e a sociedade; é um marco tão extremo
que, depois, numa redução de Hegel, teremos Adorno
nomeando lírica como uma posição ideológica,
de contraste do poeta com a sociedade. Se não me engano,
foi também Adorno quem disse que Ulisses — o de
Homero, não o de Joyce — foi o primeiro burguês.
Talvez fosse possível dizer, seguindo essa linha de pensamento,
que Enéias foi o primeiro católico e que Édipo,
o primeiro complexado. E ainda, que Adorno foi o primeiro filósofo
alemão.
.......Mais
alguns exemplos de prática genérica excluídos
da poética clássica:
trovadores da Idade Média na Provença, sul da
França. Se formos a um dos poemas mais famosos de Guilhem
de Peitieu, encontraremos:
.....................................Ab
la dolchor del temps novel
.....................................foillo
li bosc, e li aucel
.....................................chanton,
chascus en lor lati,
.....................................segon
lo vers del novel chan¹.
.......versos
de uma composição que saúda a Primavera,
na leitura mais elementar. É uma tradição
que não iria se esgotar aí, pois esses famosos
versos foram imitados, parafraseados e traduzidos por vários
outros poetas. Massimo Bontempelli, na sua edição
de antologia Lirica Italiana²,
aproveita o surgimento da motivação primaveril
num poema para dizer da tradição que remonta a
Peitieu, e lista os nomes de Jaufré Rudel, Bernart de
Ventadorn e cento altri, dentro da lírica provençal.
Os motivos se repetem sempre: cada pássaro entoa seu
canto, os bosques reflorescem, o tempo novo é doce, etc.
Arnaut Daniel recria o motivo numa canção famosa,
em que diz:
.....................................e
no i ten mut bec ni gola
.....................................nuills
auzels, anz brai'e chanta
.....................................cadahus
.....................................en
son us
.....................................etc.³
.......e
no século XIII, já na chamada lírica italiana,
temos um poema de Lippo Pasci de' Bardi, onde se lê:
.....................................Al
novel tempo e gaio del pascore
.....................................che
fa le verdi foglie e' fior' venire,
.....................................quando
gli augelli fan versi d'amore4
.......e
assim por diante, praticamente uma versão do poema de
Peitieu, que nasceu no século XI. Seria possível
estender o número de exemplos, mas realmente não
é o caso. O que interessa aqui é que, onde quer
que se vá buscar boa poesia, se vai notar que a qualidade
depende do conhecimento do autor de sua arte. O conhecimento
tem passado precisamente pela cultura oral, pela leitura, a
imitação e a tradução, e é
por esse motivo que se chama tal coisa cultura.
Dom
Quixote: A Burla da Cavalaria Andante
.......A
cultura não funciona como ovelhas que sempre seguem o
mesmo caminho. Consideremos a paródia.
.......Já
nos séculos XV e XVI o leitor poderia encontrar uma quantidade
razoável de obras que, assim como o Engenhoso Fidalgo
de Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616), serviram para descompor
os atos antes valorosos da cavalaria. Mas as vai encontrar fundamentalmente
escritas em verso, e, com efeito, não possuem o mesmo
espírito patético da história do desmiolado
Quejada, ou Quijana, que saiu ao mundo para imitar os livros
e levou consigo um lavrador simples, mas engenhoso.
.......No
Orlando Furioso, de Ludovico Ariosto (1474-1533), já
encontra o mundo cavaleiresco alguma zombaria, quando ocorrem
cenas de massacres, principalmente as protagonizadas a partir
do Canto XIV por Rodomonte, que chacina centenas de cristãos
para abrir seu caminho; ou como Ariosto descreve as mortes de
alguns guerreiros, que discursam antes de perecer justamente
o contrário do que lhes acontece, e, ao invés
de provocarem um efeito trágico, colaboram para o desdém
do leitor pelos cavaleiros, como no caso de um que havia dito
à sua dama que tornaria súbito, e o comentário
do narrador é que foi "cumprida a promessa";
ou o cavaleiro que, para adentrar as muralhas de uma cidade
vai aniquilando todo o exército que se lhe opõe,
e arremessa os mortos por sobre as ameias; ou Sacripante, num
interlúdio famoso dentro do poema, que é tomado
por Angélica fugitiva como o tolo mais próximo
e apaixonado para defendê-la da matança da guerra,
num exemplo escancarado de dame sans merci
.....................................(...)
por dó, seu coração não rende,
.....................................como
quem desdenhosa a todos seja
.....................................e
não ache quem dela digno seja.
.....................................Contudo
o achar-se só nesse silvado,
.....................................lembra-lhe
de tomar este por guia;
.....................................que,
quem tem águas às barbas, obstinado
.....................................em
não gritar socorro assaz seria.
.....................................Se
este ensejo lhe escapa, em outro lado
.....................................Escolta
tão fiel não acharia.
.....................................Pois,
por mil provas, conhecera ela antes
.....................................Tal
rei o mais fiel dos seus amantes.
.....................................Mas
nem por isso pensa do tormento,
.....................................Que
o gasta, aliviar a quem a ama,
.....................................Nem
compensar passado detrimento
.....................................Co
prazer que um amante mais reclama.
.....................................Mas
só algum engano e fingimento,
.....................................Para
o ter na esperança, ela urde e trama:
.....................................Pra
dele se servir quanto precisa,
.....................................E
após voltar à dura e altiva guisa.
.....................................(tradução
de Luiz Vicente De Simoni)
entre tantos outros exemplos possíveis, nos quais se
encontram também nigromantes e elmos encantados, tais
quais os do sonho de Dom Quixote, mas então atuantes
dentro de um sistema que os torna verossímeis e não
sonhados pelos personagens. Há também o Morgante,
de Luigi Pulci, e há o bizarríssimo Baldus
(poema ainda sem tradução para o português,
como o de Pulci e o de Ariosto5),
de Teófilo Folengo (1491-1544), mantuano de nascimento,
mas que foi se estabelecer em Veneza, preceptor dos filhos de
Camillo Orsini. Para que vocês sintam de que se trata,
ponho a proposição e um pedaço da invocação
do poema, na macarrônica emenda de italiano e latim, seguida
da minha paupérrima transcrição apenas
para comodidade do leitor (o ideal, suponho, seria uma tradução
em versos que fizesse o texto soar como Juó Bananére):
.....................................Phantasia
mihi plus quam phantastica venit
.....................................historiam
Baldi grassis cantare Camoenis.
.....................................Altisonam
cuius phamam, nomenque gaiardum
.....................................terra
tremat, baratrumque metu sibi cagat adossum.
.....................................Sed
prius altorium vestrum chiamare bisognat,
.....................................o
macaroneam Musae quae funditis artem.
.....................................An
poterit passare maris mea gundola scoios,
.....................................quam
recomandatam non vester aiuttus habebit?
.....................................(Fantasia
bem mais que fantástica vem me cantar
.....................................com
minhas gordas Camenas6
a história de Baldus.
.....................................Altissonante
é sua fama e seu nome galhardo faz
.....................................a
terra tremer e o báratro todo cagar-se de medo.
.....................................Mas
antes preciso chamar-vos, ó Musas
.....................................que
fundastes a macarrônica arte altíssima.
.....................................Acaso
minha gôndola pode evitar os escolhos do mar
.....................................sem
que eu me recomende ao vosso socorro?)
.......Encontramos
também, em português, a farsa que Gil Vicente (1465-1537)
escreveu chamada Quem tem Farelos?, na qual o escudeiro
e seus criados passam agruras tão temíveis que
chegam mesmo a ficar esfomeados, e daí o título
da peça, aludindo ao tom esfarrapado e grosseiro das
necessidades dos personagens que, entre outros dilemas, têm
o de uns cães e uns gatos ficarem latindo e miando todo
o tempo.
.......Mas
tudo isso está muito distante da realização
de Cervantes, embora sejam princípios apreciáveis
do esgotamento de um ciclo.
Para exemplificar o tratamento conferido por Cervantes aos romances
que cita em profusão, vou falar sobre um episódio
dos iniciais do livro, capítulo V, no qual se encontra
Dom Quixote caído na relva, moído a pancadas,
antes mesmo de ter Sancho Pança como seu escudeiro. Nesse
episódio, Dom Quixote recita, a todas as perguntas de
um conhecido seu muito preocupado com o estado em que se encontra,
os trechos do romance de Valdovinos e o Marquês de Mântua.
.......O
Romance del Marqués del Mantua y Baldovinos (seu
sobrinho) narra em versos octossílabos — como é
de praxe — uma história trágica7
na qual se envolvem os personagens durante a prática
do esporte nobre da caça, às margens do Pó,
quando, após terem comido e descansado "Oyeron un
gran ruido/ Entre las ramas sonare", e vêem entre
a folhagem um cervo. Imediatamente largam tudo, soltam sabujos
e lebréus, e montam em busca da presa, dividindo-se sem
critério. O Marquês se desencontra dos demais,
perdido num bosque espesso em meio ao monte, embora se tenha
dito no início “Con él van los sus monteros/
Para haberlo de guardare”, e então, se desenha
uma tempestade na noite que cai. Ele anda sem norte até
que encontra um vale, "Cuando oyó dar un gran grito/
Temeroso y de pesare"; saindo a procurar quem esteja em
estado tão penoso, dá com um cavaleiro morto e
mutilado, estirado na ravina. Ele segue o rastro de sangue e
chega a um sítio onde jaz outro cavaleiro, vivo, e dono
da voz lamentosa, que o Marquês pára para ouvir.
.......Aqui
chegamos ao trecho coincidente com o do capítulo de Dom
Quixote, onde se lê:
.....................................¿Dónde
estás, señora mia,
.....................................Que
no te duele mi mal?
.....................................O
no lo sabes, señora,
.....................................O
eres falsa y desleal.
e o romance originalmente diz:
.....................................—
¿Dónde estás, señora mia,
.....................................Que
no te pena mi male?
.....................................De
mis pequeñas heridas
.....................................Compasions
olias tomare,
.....................................Agora
de las de muerte
.....................................No
tienes ningun pesare.8
ligeiramente,
como se vê, modificado por Cervantes.
.......O
cavaleiro prossegue numa lamentação bastante eloqüente,
como dão prova estes dois versos ótimos: "Pensando
venir á caza/ Mi muerte vine a cazare", entre outras
lamúrias que se estendem por uma centena de versos, até
um ponto fundamental, que é onde também Cervantes,
após ter dito que Dom Quixote recitara a centena de uma
enfiada, retoma: "¡O noble marqués de Mantua/
Mi señor tio carnale!", ponto dramático do
poema, no qual, em meio a lembranças, o cavaleiro acaba
por revelar ao seu ouvinte, ainda secreto, a sua identidade,
e que em Cervantes indica que Dom Quixote confundiu sua voz
com a do pobre Valdovinos, quando recorria "a su ordinario
remedio, que era pensar en algún paso de sus libros"9.
.......A
paródia começa a se desenvolver desde esse momento,
pois o narrador alude ao absurdo de um homem ferido declamar
tanto e tão bem, pondo o discurso de Valdovinos na boca
do alquebrado Dom Quixote, que encontrou, portanto, um meio
eloqüente de se queixar das feridas produzidas nele pela
surra que tomara dos mercadores de Toledo no capítulo
anterior. O romance cai como uma luva: o cavaleiro moribundo
se encomenda à sua dama, tal qual Dom Quixote, que se
encomenda, é evidente, a Dulcinéia del Toboso,
motivo da infeliz querela.
.......A
situação de Valdovinos é lastimável
e o sabemos por seu tio, o Marquês de Mântua, se
achegar dele e, confundido com o escudeiro pelo sobrinho e retificando-se
para cavaleiro, ouve suas confissões e feridas, que contam
vinte e uma distribuídas pelo corpo. Valdovinos faz sua
genealogia, filho do rei da Dácia, um dos pares de França,
atraiçoado pelo filho do imperador, Carloto, que havia
procurado desonesta e inutilmente a mulher do próprio
Valdovinos, e que acabou por se vingar nele da rejeição
dela. O Marquês o despe para cuidar as feridas e o vê
banhado em sangue. Limpa o rosto do rapaz e revela sua identidade,
em prantos. Ora, esse momento tão tenso e verdadeiramente
comovente merece de Cervantes a entrada de um personagem, um
lavrador vizinho do sr. Quixana, que ele "creyó,
sin duda, que aquél era el marqués de Mantua,
su tío" e prosseguiu cantando o romance, na parte
em que nos detivemos.
.......O
pequeno exemplo colhido quase ao acaso na imensa obra de Cervantes
serve de modelo para captar o método por meio do qual
ele se apropria do discurso das novelas e romances cavaleirescos
injetando neles ironia. No caso, é perceptível
que Cervantes não só conhece bem a tradição
que encerra, como domina o modo de manipular seus enredos para
funcionar como uma paródia alusiva, pontuando a prosa
com versos tomados, como se vê, extremamente a propósito,
de maneira a não perturbar seu próprio texto pela
interferência da citação e desfigurando
a matéria de origem com perícia pontual, como
nos momentos em que se revela Valdovinos, e quando entra o seu
"Marquês de Mântua". O seu trabalho é,
portanto, desfazer o tom trágico ou dramático
dos romances em pontos estratégicos, repisando absurdos
como ocorre desde o início do livro, quando o narrador
se aborrece com as feridas que os cavaleiros tomam sem dar pelo
caso, e desfigurando, como eu disse, o teor do material
de origem numa cena burlesca.
.......Como
acaba o romance de Valdovinos? Ele morre, de fato. Carloto,
o traidor, é punido com a morte. Obviamente se pode dizer
que o romance tem rimas fáceis e metro popular —
pois rima em geral particípios e infinitivos —,
mas a leitura transcorre, mesmo em voz alta, sem dar pela técnica
empregada e levemente pelas rimas, o que constitui, segundo
eu entendo, a grande prova da poesia narrativa rimada.
.......Enfim,
o romance se encerra dizendo que Valdovinos vive "Aunque
murió, muy honrado", como numa ode de Horácio,
Exegi monumentum ("ergui um monumento"),
em que a voz diz algo como "morrerei, mas não de
todo". Nos dois casos com certeza; cada um, eu diria, a
seu modo.
Notas