Advertência: Começa
aqui uma pequena série (irregular) de artigos, com traduções, sobre as
Metamorfoses, de Ovídio, dentro da
Officina. Por
quê? Pelo
auto-propalado caráter oficinal da Officina (ou não teria nem
mereceria esse nome) e porque é um dos poemas mais interessantes e
importantes de todos os tempos além de, pasmem: NÃO HÁ há tradução
completa em versos, na língua portuguesa, para os quinze livros que
perfazem a obra. Qui possum facere? foi a interrogação que me
fisgou há uns três anos. Traduzir e comentar me pareceu ser a resposta, e
então, o resultado parcial e provisório — a se estender para um futuro
indeterminado — é o que segue.
Duas
Palavras Iniciais sobre as Metamorfoses, de
Ovídio A
Primeira Lei da Conservação das Massas, de Lavoisier, o "nada se
perde, tudo se transforma", registra filosoficamente — e talvez como um
paradoxo — que o núcleo da mudança é a permanência. É assim que podemos
ler também as
Metamorfoses, de Ovídio, poema, como disse, do primeiro século da
era cristã (e que nada tem a ver com ela). Um
pouco de ficção biográfica: Ovídio nasceu em Sulmona — Sulmo mihi
patria est — e se educou em Roma, como seu irmão mais velho, para a
carreira de advogado, que demandava os cuidados uma educação retórica
esmerada. O problema é que não lhe agradava o trabalho; a retórica serviu,
enfim, para a construção da técnica absoluta que demonstraria como poeta.
Um primeiro exemplo são os Amores e as epístolas chamadas
Heróides, em que Ovídio apresenta cartas amorosas entre heroínas e
heróis mitológicos, como Hero e Leandro, que se queixam retoricamente de
seus infortúnios. Seu pai não gostava da idéia de ter um filho poeta — não
podemos censurá-lo —, e teria dito que "até mesmo Homero morreu
miserável", apelando para outra eloqüência, a financeira. A situação da
poesia, como vemos, não mudou muito nos últimos dois mil
anos. A
profecia do pai, ou a praga, pegou. De poeta cortesão, elegante, refinado
e apreciado por aqueles que eram seus pares, caiu em desgraça com o
Imperador Augusto, o divino Augusto, e foi exilado para Tomos, um lugar
inóspito na Europa Oriental — atualmente Constantza, na aprazível Romênia.
Tentou captar a benevolência do imperador com os Fastos, poema
sobre as festividades romanas através do calendário, e com Júlio César, no
fim das Metamorfoses, se transformando numa estrela — Júlio César
fora tio de Augusto. Não adiantou nada, e Ovídio morreria mesmo afastado
de Roma, no exílio, apenas quatro anos após a morte de
Augusto. As
hipóteses a respeito da ira de Augusto são várias e, como tudo que versa
sobre o passado, pura especulação, às vezes um tanto patética: talvez
Ovídio tenha sido indiscreto sobre algum aspecto delicado do imperador ou
de sua família, pois no seu poema, já do exílio, de onde veio a maior
parte dessas informações (Tristia, livro IV, décima elegia) ele emparelha sua sina com a de
Actæon — o neto infeliz de Cadmo, que, por ter flagrado Diana, a deusa da
caça, nua durante a toilette, é transformado em gamo silvestre e
despedaçado por seus próprios cães de caça — através do uso de duas
palavrinhas bastante específicas em oposição, que aparecem tanto no
episódio mencionado das Metamorfoses (III, vv.138-252), quanto na
elegia sobre seu próprio desterro. Então: (Tris.,
IV, "Elegia decima", vv. 89-90):
Scite,
precor, causam — (nec vos mihi fallere faz est)
—
Errorem jussae, non scelus, esse
fugae.
Sabei, pois, e eu vos rogo (não me é lícito
enganar-vos),
Que causou meu exílio um erro, não um
crime.
(trad. José Paulo Paes1) (Met.
III, vv. 141-142):
At bene si quaeras, Fortunae crimen in
illo,
non scelus invenies; quad enim scelus error
habebat?
Mas
se bem consideras o crime da sorte no caso, crime não há; pois como haveria crime num erro?
(Tradução de Dirceu Villa)
Negritos
por minha conta, a fim de ajudar a perceber; e essa história colocou a
pulga atrás da orelha de muitos latinistas, especialistas em Ovídio, etc.,
interessados em desvendar a causa do banimento. Talvez seja um trecho de
texto posterior nas Metamorfoses, mas do próprio Ovídio: não
saberemos. De qualquer forma, o fim melancólico e todas as anedotas já
tradicionais sobre o poeta não têm muito a dizer sobre o que é
provavelmente o poema mais importante da tradição ocidental, as
Metamorfoses, ou Metamorphoseon Libri. A quantidade de
grandes poetas, escritores, escultores, pintores e músicos que lhe deve
muito é enorme. E da mesma maneira que Ovídio legou à tradição ocidental
posterior os contos de seu poema, senão mesmo um exemplo de técnica
poética e perícia retórica, eles também vieram de outras fontes, numa
época em que a poesia era considerada uma arte regrada por códigos de
imitação, citação, alusão e emulação, etc.2; por isso, digamos que ele opera
como que um nó no repertório de temas greco-romanos, concentrando a
matéria antes dispersa, e que se veria esparsa novamente depois dele.
Como
muitos dos prováveis modelos de Ovídio (e possivelmente gregos em sua
maioria) estão perdidos,
podemos apenas apresentar alguns deles e especular que o poema tenha
surgido de diversas outras recolhas de histórias mitológicas além dos
evidentes Hesíodo, da Teogonia, e Homero — este último nos dois
poemas mais famosos e naquilo que vieram a chamar Hinos Homéricos.
Há, no trecho traduzido, empréstimos de Eurípedes em As Bacantes; a
estilística helênica do verso (já desde os Amores); o Virgílio da
Eneida, etc. O
perpetuum carmen que Ovídio se arroga é também um perpetuum
motuum, um movimento perpétuo. O caos muda em ordem; César mudado numa
estrela, mulheres em pássaros, árvores; as coisas mudam em ouro na mão de
Midas, e o que parecia uma bênção é, na verdade, um inferno. Estamos
diante de um livro didático? De um livro moral? De uma coleção de contos
antigos? Estamos diante de tudo isso e mais outras tantas coisas. Ovídio
não descende, como Virgílio, da épica homérica; não em linha
direta. Poderíamos olhar para as Metamorfoses acreditando ver
uma série de poemas. Seria mais lúcido, porém, ver apenas um poema
composto de diversas faces; se formos ainda mais caprichosos, poderemos
até mesmo admitir poeticamente que a linha que Ovídio se impôs, a das
metamorfoses, é parte também da composição estrutural do poema — ele está
cambiando um trecho no outro, de tal forma que os livros se interpenetram
e a estrutura, antes invisível, se torna implícita e inevitável. Afastamos
uma limitação muito comum de descobrir unidade somente onde ela está
manifesta como evidente.
OVÍDIO
EM PORTUGUÊS & ESTA TRADUÇÃO (en
passant) Ovídio
não deu muita sorte em português. Não como Homero, para citar um poeta
antigo, ou mesmo Dante Alighieri, da Divina Comédia, que tem as
traduções sérias de Cristiano Martins (completa) e Haroldo de Campos (o
Paradiso), e ainda conta, para efeito educativo, com aquele fiasco
horrendo de Xavier Pinheiro. Isso não quer dizer
que poetas e tradutores muito bons não tenham se dedicado a traduzir o
grande poema de Ovídio: o problema é que nenhum dos esforços levou a cabo
a longa e árdua tarefa de passar para a língua os quinze livros das
Metamorfoses, e sequer os teríamos completos se juntássemos as
tentativas esparsas. Houve, entre os exemplos mais notáveis, Bocage3, que escolheu
trechos (Midas transformando tudo em ouro, Tereu e Procne, Orfeu descendo
aos Infernos atrás de Eurídice, etc.) e usou um decassílabo fluente,
engenhoso, para a sua tradução. O trecho de Tereu e Procne, um dos mais
cruéis de todas as Metamorfoses, é um bom exemplo de como o
decassílabo funcionou com Bocage: Com estes ameaços o
tirano Sente no coração
ferver-lhe a raiva, Mas não menor que a
raiva é nele o medo; E de uma, e de
outra coisa estimulado, Da lustrosa bainha
o ferro despe, E às tranças da
infeliz a mão lançando, Em duros nós lhe
enleia os tenros braços. Inclina Filomela o
níveo colo, Da espada, que vê
nua, espera a morte; Mas o duro, o
feroz, por mais que a triste Lute, resista,
invoque o pátrio nome, Com rígida turquês
lhe aferra a língua, A língua, que falar
em vão procura, Lhe extrai da boca,
e rápido lha corta. A purpúrea raiz lhe
nada em sangue, Cai o resto ao
chão, murmura, e treme, Qual da escamosa
serpe mutilada A cauda palpitante,
e moribunda, Que ao corpo em que
viveu pretende unir-se. Como escreve João
Angelo na introdução do volume da Hedra: "o princípio geral (...) que nos
parece nortear a versão de Bocage é a fluência, vale dizer, o ritmo" —
palavras odiadas hoje por teorias (ah, teorias) de tradução — e continua,
afirmando que ela se faz ler "e ouvir sem que se percam o tom, imagens e,
principalmente, o deleite na compreensão". Mais exato, impossível.
Comparada ao original, pouco se perde; Bocage tenta até mesmo imitar sons
terminais, aproximar a língua etimologicamente, mas sem mão
pesada. Houve também Antônio Feliciano de
Castilho, mais lembrado nos soporíferos livros de História da
Literatura Portuguesa como o velho romântico que criou caso com Antero
de Quental — a célebre e ridícula "Questão Coimbrã" —, e chegou a traduzir
os primeiros cinco livros completos, também no esquema decassilábico, na
verdade bastante baseado no trabalho anterior de Bocage. Há trechos até
bem feitos, como o de Narciso, mas não é o seu melhor trabalho, nem mesmo
com Ovídio: a tradução de Castilho para a Arte de Amar (Ars
Amatoria) é espantosamente melhor. Nela, aproveitando o fato de que
Ovídio a escrevera no dístico elegíaco latino, transpôs o poema para
alexandrinos em dísticos rimados, e nem sequer despreza paralelismos ou
aliterações4 — que
contribuem enfaticamente para a robustez do verso de
Ovídio. Se
inda alguém neste povo a arte de amar ignora, leia-me:
os versos meus o farão mestre agora. Com
arte, a vela e remo, um lenho é voador; é-o
com arte um coche; arte governe o amor. Vive
na voz da fama o auriga Automedonte; vive
Tífis, mareando a nau do hemônio monte, Vênus
de amor à escola impôs-me professor5 Esse
é o início da proposição, e já percebemos a que Castilho veio, numa grande
tradução, até hoje sem par. Remoque mouentur não pôde ser traduzido
mantendo a aliteração no verso três; no verso seis, entretanto, temos
mareando a nau do hemônio
monte. Castilho não perde tempo nem enfraquece no decorrer do serviço.
Isso na Ars Amatoria. Sua
versão em decassílabos para as Metamorfoses não foi a melhor opção,
muito desanimadora em face da Arte de Amar , nos deixando a
lamentar o fato de não ter feito com o maior poema de Ovídio o que sabia
tão bem fazer. Quero dizer coisas muito específicas com isso: o tom do
poema alcançado no caso decassilábico em geral não é o tom de
Ovídio (mesmo considerando o certeiro trabalho de Bocage), que exige uma
certa opulência verbal. Se você o traduz em dez mirradas sílabas,
significando o que foi feito num hexâmetro que podia alcançar dezesseis ou
dezessete (todos os recursos técnicos inclusos), ou você é um gênio
bizarro — como Odorico Mendes —, ou algum nível de malogro é inevitável.
Na versão de Castilho, o malogro foi com tudo que tinha direito,
hélas! Leiam o pedaço que inicia o episódio de Baco e os piratas
tirrenos:
Indo
uma vez a Delos, costeamos Naxos;
à destra remo, alcanço o pôrto, E
salto à praia. Ao cabo dessa noute, Vindo
a arraiada a apavonar as nuvens, Alevanto-me;
aos nautas determino, Que
se renove a aguada, e lhes aponto Caminho,
que os depara a fontes frescas. Subo-me
num outeiro, exploro os ventos Pelo
cariz do céu; apupo aos homens, Que façam volta (…)6
Acho
que basta. Comparem esse excerto muito infeliz com o original; com a minha
tradução; com o decassílabo de Bocage; ou com o próprio trabalho de
Castilho na Ars Amatoria: é inexplicável. Parece um resumo pronto
às pressas, sem cuidado com aliterações, repleto de palavras mal-colocadas
— "apavonar", "cariz", "apupo" —, descuido com o tom, com o fato de que é
um marinheiro falando a Penteu, e feito num esquema sintático de
staccato, de toscos enjambements, etc. O oposto de Ovídio, e
do elogio de Angelo às qualidades da versão de Bocage.
Houve também a ótima tradução de Haroldo de Campos para o episódio de Narciso. Campos usou o dodecassílabo e dispensou rimas (que deram um grande resultado no caso de Arthur Golding7, e no de Castilho da Amatoria); teve toda a atenção típica dos concretos no elemento por assim dizer "inventivo" da linguagem: percebeu que Ovídio, valendo-se de seu virtuosismo, aproveitou que a história baseava-se em espelhamentos e os mimetizou nos versos; Campos o seguiu com muita sensibilidade. Exemplos de quando Narciso se contempla e deseja a si mesmo sem saber: "Se inclina, vai beber, mas outra sede o toma:/ enquanto bebe o embebe a forma do que vê", ou, "No mirar-se, admira o que nele admiram". Haroldo
de Campos consegue uma tradução exemplar de Ovídio também por manter-se
fiel à elegância de seu fraseado. O início do trecho, típica descrição
ovidiana, é traduzida com economia de meios e ainda assim,
estilisticamente perfeita: Fonte
sem limo, pura prata em ondas límpidas, jorrava.
Nem pastor se achega, nem pastando seu
rebanho montês, ou gado avulso, acode. Nem
pássaro, nem fera, nem, tombando, um ramo perturba
a úmida grama que o frescor irriga. O
bosque impede o sol de aquentar este sítio. Da
caça e do calor exausto, aqui vem dar Narciso,
seduzido pela fonte amena8 Nesse momento
cheguei a pensar que teríamos as Metamorfoses em língua portuguesa
de um jeito decente. É pena que tenha traduzido tão
pouco. E
há Pound, que é preciso considerar porque incorporou o trecho de Baco e os
piratas ao Canto II de maneira única, até certo ponto traduzindo, mas
dispondo os versos na ordem que lhe convinha. Ezra
Pound é talvez o mais notável dos admiradores da obra de Ovídio no século
XX; se The Cantos deve a Dante Alighieri, deve igualmente, senão
mais, a Ovídio: a idéia da "épica sem enredo", definição cunhada pelo
maior especialista em sua obra, Hugh Kenner; os "momentos mágicos" do
poema, em que vários são transformações físicas ou mentais; a paráfrase no
Canto II do seqüestro de Baco por piratas tirrenos; citações contínuas de
Ovídio que perpassam a obra: no Canto IV é mencionada a história de
Actæon, do livro III, e Ovídio comparece como personagem; no Canto XX,
nova citação nominal de Ovídio, etc. Outro
desses pontos de contato é também a tradução de Arthur Golding (que
veremos mais tarde), elogiada por Pound no ABC of Reading: "é o
mais belo livro da língua", e prioriza na antologia Confucius to
Cummings, com a colaboração de Marcela Spann, dando-lhe mais páginas
do que para Shakespeare. Mas seria excessivo dizer que as 27 páginas são
para Arthur Golding; elas são para Ovídio, lido na tradução quinhentista.
Aqui
vai a parte do Canto II, extraída do episódio das Metamorfoses —
comparar depois com o texto de Ovídio e com a minha
tradução: O
barco aportou em Quios,
homens querendo água fresca, E
junto da fonte um garoto pequeno, lerdo com o mosto da
uva,
"Pra Naxos9?
Claro, a gente te leva pra Naxos, Chega aí, guri." "Não, não é pra lá!" "Êeh, pra lá é Naxos." E eu disse: “Este é um navio honesto." E
um ex-presidiário saído da Itália
derrubou-me entre o cordame, (Era
procurado por homicídio na Toscana)
E todos os vinte contra mim, Loucos
por pouco dinheiro escravo.
E o levaram para fora de Quios E
para fora da rota...
E o garoto acordou, de novo, com o rumor, E
olhou por cima da proa,
ao leste, e para o estreito de Naxos. Ardil
divino então, ardil divino:
O barco breca no redemoinho, Hera pelos remos, rei Penteu10
uvas sem semente só espuma, Hera
no embornal. É,
eu, Acetes, estava lá,
e o deus ao meu lado, Água
cortando sob a quilha Quebradeira
sob a popa,
esteira escorre pela proa, E
onde fora o alcatrate, era agora a trepadeira, E
gavinhas onde havia a cordagem,
folhas de videira nos toletes, Pesada
vinha nas hastes dos remos, E,
do nada, um bafejo,
hálito quente nos meus tornozelos, Feras
feito sombras em espelhos,
uma cauda felpuda sobre o nada. Rosnar
de lince, e acre odor de feras,
onde cheirava a alcatrão, Farejar
e pegada de feras,
olho-faísca no ar escuro. Céu
em excesso, seco, sem tempestade, Farejar
e pegada de feras,
pêlo roçando meu joelho, Farfalhar
de élitros voando,
formas secas no æther. E
o navio como a quilha no estaleiro,
engastado como um boi no guincho do gaivão11, Ripas
aderem ao casco, uva
em cachos nas cavilhas, ar
vazio ganhando pele. Tendões
se enlaçam no ar sem vida,
vagar felino de panteras, Leopardos
farejando brotos de uva no embornal, Panteras
agachadas na escotilha, E
em torno, o mar azul-profundo,
verde-rosa em sombras, E
Lieu: "Doravante, Acetes, meus altares, Sem
temer o cativeiro,
sem temer os felinos selvagens, Seguro
com meus linces,
dando uvas aos meus leopardos, Olíbano
é o meu incenso, vinhas crescem em minha homenagem." A
maré agora suave nas correntes do leme, Focinho
negro de um golfinho
onde estava Lycabas, Escamas
de peixe nos remadores.
E eu venero. Eu
vi o que vi.
Quando trouxeram o garoto eu disse: "Há
um deus nele, embora eu não saiba que deus." E
me chutaram pros cordames. Eu
vi o que vi:
A face de Médon feito a dum peixe-galo, Braços
encolhem em barbatanas.
E tu, Penteu, Devias
ouvir Tirésias12
e Cadmo,
ou a tua sorte vai te deixar. Escamas
cobrindo as virilhas, rugido de lince em meio ao mar...13 (Tradução
de Dirceu Villa)
* A
minha tradução de Ovídio se deve a diversos motivos. O principal é que eu
acho esse, provavelmente, o melhor poema da tradição ocidental: as
histórias são magníficas em si, o artesanato do verso de Ovídio só é
comparável ao dos melhores, e é o poema mais influente da história da
poesia e da arte. O que seria dos pintores do Renascimento até o século
XIX sem Ovídio? Há quatro painéis de Delacroix no acervo do MASP (Museu de
Arte de São Paulo) que vieram diretamente das Metamorfoses;
Velázquez, o maior dos pintores, tinha dois exemplares das Metamorfoses
em sua biblioteca, um em espanhol, outro em italiano. Sei lá se
estavam traduzidos em verso, mas ele, assim como a tradição que vinha de
Caravaggio, compreendeu a idéia hoje talvez meio poundiana (The Spirit
of Romance14) de que Ovídio
"caminhava com as pessoas do mito", significando que deuses e heróis
surgiam em retratos na velocidade da ação contínua que, como diz Italo
Calvino15, percorre
páginas e páginas com os verbos no presente, ou dramaticamente cedendo a
voz para uma narrativa em primeira pessoa. No
sentido pictórico, isso significa o famoso Narciso de Caravaggio,
ou o Festim de Baco — Los Borrachos, ou como se queira
chamar o quadro — de Velázquez, que propõe um Baco como o vemos no livro
III das Metamorfoses, um rapaz sensual, e coroando de folhas de
parreira um bando de beberrões camponeses na pintura. Ortega y Gasset, que
nos seus comentários associa a tela à picaresca espanhola, não vislumbrou
a ligação direta com o estilo de Ovídio nem com a tradição italiana de
Caravaggio (embora esta última certamente terá sido omitida por demasiado
óbvia). Ele diz: "Este es un hecho muy interesante" — o fato do quadro ser
uma novidade na Espanha — "porque, en cambio, en la literatura picaresca,
tan popular en los siglos XVI y XVII, se encuentran muchas escenas de
borrachos."16 A
pintura é totalmente o avesso da picaresca, porque o "realismo" do
Baco adiposo e dos beberrões pobres e esfarrapados não é caricatural, não
é a vis comica: é aplicação de Ovídio mais Caravaggio numa
concepção de caminhar com as pessoas do mito; o que, por sua vez,
também não é tão poundiana assim. Pode-se encontar uma formulação muito
semelhante no livro de Junito de Souza Brandão, Mitologia Grega,
que escreveu o seguinte: Dioniso é um deus humilde, um deus da vegetação, um deus dos campônios.17 Afirmando
também que Baco era o, por assim, dizer, "mais humano" dos deuses, e que
está no trecho de Ovídio, de certa forma, quando Acetes diz: nec enim
praesentior illo est deus; e Brandão está falando da concepção mais
antiga que pôde encontrar de Baco; e está além de qualquer suspeita quanto
a ser um poundiano, tinha um gosto antiquado para poesia, era o seu tanto
junguiano, etc. Seria cansativo tentar apreender a quantidade de bons
artistas em tempos diversos que deve alguma coisa a
Ovídio.. Outro motivo da
tradução, que está em processo, é tentar completar enfim os quinze livros
para o português, o que significa trabalho pesado por tempo indeterminado.
Além disso, há uma questão interessante de opção tradutória. O hexâmetro
datílico, usado nas epopéias de Homero e Virgílio, e nas
Metamorfoses, é normalmente traduzido em português
como:
a)
decassílabo; b)
dodecassílabo ou alexandrino; c)
imitação estrita dos seis pés datílicos — isto é, uma
longa e duas breves —,
a cada verso,
como fez Carlos Alberto Nunes, contra todos que disseram que
isso "não é verso de
língua portuguesa"; d)
em prosa. Então,
resolvi que não usaria nenhum desses métodos, procurando descobrir se o
verso livre (coisa que Eliot espertamente disse não existir)
poderia funcionar. Evitei, portanto, embora
dele me aproxime mais do que dos outros, o sistema de Carlos Alberto Nunes
(que nos dá uma narrativa rítmica, sem responder propriamente às técnicas
poéticas, e num ritmo sem truques, monótono). O poema de Ovídio à
primeira vista poderá parecer mais um poema moderno, inclusive pelas
interpolações, nada estranhas, de qualquer forma, à sua própria prática.
Brandas, suaves, mas interpolações. Enfim. Neste
trecho que traduzi do livro III, em que os piratas seqüestram Baco para
vendê-lo como escravo, Ovídio está na verdade parafraseando e ampliando o
Primeiro Hino Homérico a Dionísio; as diferenças gerais estão em
que no poema grego Dionísio se transforma em leão e faz outros animais
surgirem no barco, como um urso, e há, no começo, uma apresentação do tema
e um elogio à mãe do deus, Sêmele. Este pequeno trecho do Hino, por
exemplo: Quando eles [os piratas] o viram [Baco, na forma de garoto], fizeram sinais uns pros outros e logo o agarraram e o puseram cativo, exultantes, a bordo, pensando que filho ele fosse de reis estimados dos deuses. Queriam prendê-lo com rudes amarras, é impossível: os nós não apertam, e voam as cordas de juta distantes dos pulsos e pés; e o deus então se sentou com um sorriso em seus olhos escuros. O timoneiro enfim compreende e grita aos seus sócios, dizendo: "Loucos! Que deus forte foi esse trazido amarrado? Nem mesmo o navio de enorme convés poderá carregá-lo. É certo que é Zeus ou Apollo do arco de prata, ou Posêidon, pois não parece um mortal, e sim um dos deuses que vivem no Olympo. Deixemos que vá pela praia de areias escuras: que fique intocado para não nos punir com ávidos ventos nem tempestades pesadas." Assim ele disse; mas com palavras de insulto o mestre lhe disse: "Louco, cuida do vento e dá velas ao barco: nós vamos cuidar do garoto; (..)"
(Tradução de Dirceu Villa)
como vocês verão, é muito parecido
com o das Metamorfoses. Depois, Ovídio acrescenta desenvolvimentos
da história a partir de As Bacantes, de
Eurípides. Em
"Baco & os Piratas Tirrenos" se pode observar que o estilo de Ovídio
não é o de epítetos e de trechos de verso que se repetem, como em Homero.
Não há a "políssona praia"18 da Ilíada,
v. 34 (a expressão que retorna, como é comum em Homero, por todo o poema,
sempre que se refere a onde estavam as naus dos aquivos), ou a expressão
também homérica do hino a Dionísio, em que lemos, no verso 7:
"sobre o mar cor de vinho", embora seja uma das fontes de Ovídio para a
confecção do poema. Evidentemente usei referências diretas das outras traduções para o
português, como, por exemplo, a de Castilho: a palavra específica que
consta da sua tradução do mesmo episódio, o "portaló" — uma abertura no
lado do navio, por onde entra a tripulação. Muito fiel ao espírito de
Ovídio, Castilho empregou uma palavra precisa, e considerei que, além da
homenagem ao esforço de Castilho, ainda acrescentaria a precisão, cara às
descrições de ovidianas. A importância de procurar semelhanças estilísticas é muito grande porque Ovídio é um esteta. Muitas vezes pude aproveitar jogos interessantes com o original quando podia conseguir o mesmo efeito aproveitando inúmeras coincidências etimológicas; outras vezes forcei semelhanças etimológicas, quando era possível produzir uma reflexão sobre o significado das palavras além do dicionário — o dicionário não registra estilo, muito menos nuances contextuais, emocionais, trocadilhescas, etc. Como escreveu, mui esperto, o poeta chileno Vicente Huidobro: "En todas las cosas hay una palabra interna, una palabra latente y que está debajo de la palabra que las designa. Esa es la palabra que debe descubrir el poeta".19 Há um exemplo de uso feliz da mesma matriz vocabular no episódio de
Baco. O verbo "titubo", que aparece "titubare", no momento em que o deus
está zonzo por beber o vinho forte. Quebrando um andamento fluente e
elegante, escrevo o verso "Turvo do mosto da
uva, titubeia de pernas trançadas", em que as aliterações em
t mimetizam o trançar de pernas do deus bêbado. Outro exemplo,
ainda no episódio de Baco, é o do barulho dos corpos dos marinheiros,
transformados em golfinhos, contra a água do mar, em que acrescentei
também uma paráfrase de um verso de Camões, nos Lusíadas, ele que
também era um especialista em imagens marinhas e grande devedor, não só
estilisticamente, de Ovídio20.
Etc. Não vou esticar esse texto em miudezas técnicas; sou da opinião que
a tradução deve falar por si. E isso tem bons motivos: os loucos por
detalhes cotejam os dois textos — latino e português — e acham as
possíveis semelhanças e diferenças (e eu não estou disposto a surrupiar a
diversão de ninguém); os que querem apenas ler um bom poema não terão de
bocejar sobre as minhas notas de tradução que, além do mais, n'éxistent
pas. Boa leitura. Baco
& os Piratas Tirrenos (Ovídio, Metamorfoses, III, vv. 597-691; tradução de Dirceu Villa)21 Em
Delos me vi uma vez, na costa da terra de
Quios, dobram-se
as velas, dirijo à direita com os remos e
salto na praia, ganhando a úmida areia: consumida
a noite no céu e à luz do arrebol levanto
e comando meus homens atrás de água fresca, mostrando
o caminho da fonte; e eu mesmo no
alto de um monte percebo a promessa dos ventos e
chamo de volta os parceiros à nave; "tamo
aqui", grita Ofeltes primeiro, que
puxa uma presa achada num campo deserto, um
garoto da praia, uma virgem na forma. Turvo
do mosto da uva, titubeia de pernas trançadas; reparo
em seu porte, seu rosto, seus passos; nada
vi que pudesse dizer "é mortal". E
eu disse aos parceiros: "qual é o deus neste corpo não sei; mas é certo que há um deus neste corpo!" Quem
quer que tu sejas, assiste propício aos trabalhos; perdoa
estes homens!" "Não vem pedir nada por nós!", brada
Dictys — ninguém o supera em subir o alto
mastro, nem
em descer pelas rudes amarras —, e
assim Libys e o loiro Melantho, vigia de
proa, e
Alcimédon aprovam, e também Epopeu, que
modula o
ritmo dos remos co’a voz e os ânimos ergue; todos
concordam: cupidez tão cega de o capturar. "Não
vou permitir violar este barco com o peso de um deus",
eu
disse, "pois aqui minha voz vale mais", e
no portaló eu resisto: mas de todos o mais atrevido,
em
fúria, Lycabas etrusco, expulso de sua cidade,
cumprindo
o exílio por negro homicídio, me
agarra a garganta com seu punho jovem e
num murro por pouco não caio nas águas, não fosse, sem
auxílio da mente, travar do cordame. Ímpia,
a turba aprova tal ato; e eis que então Baco, (Baco
era sim), como se pelo clamor dissipado ficasse o
torpor da bebida, tornando ao seu peito os sentidos,
"o
que estão fazendo? e o clamor o que é? Cheguei aqui
como?", pergunta, "para onde vão me levar?"
e Proreu, "fica
frio, ô garoto: escolhe o porto pra gente chegar, que
cê fica na terra pedida." E Líber, "pra
Naxos. Invertam o curso pra Naxos! é lá a minha casa, terra agradável aos hóspedes." Falazes
juraram, pelo mar e os numes, que assim o fariam. E
a mim deram o fardo de as velas encher ao negro navio.
À
destra era Naxos: à destra o linho eu
inflava, "O que fazes, demente?", grita Ofeltes, “que furor te deu, Acetes?" "Põe
pra esquerda!" — me fazem notar quase todos por
sinal com a cabeça, por sussurro ao ouvido. Disse,
aturdido: "pois bem, que assuma o leme algum outro, que eu não serei cúmplice em esquema de crime." Todos
me insultam, multidão de murmúrios me ofende; Æthalion,
então: "Cabeçudo! Somente contigo nossa
sorte se encerra?" disse e subiu ele mesmo ao
meu posto, se opondo ao trajeto pra Naxos. Ardil
divino, o deus finge que então desconfia da fraude, e,
da popa adunca o mar ele mira e diz, aflito num choro:
"Não
são estas praias, marujos, que me prometeram", diz: "Não são estas terras, as que eu lhes pedi!" "O
que por acaso lhes fiz? que glória enganar, Jovens, um pobre garoto; muitos, contra só um?" Choro
junto e aflito: o bando de ímpios ri dessas
lágrimas, rápidos
remos varrem as vagas. Juro
agora em seu nome (não há deus mais presente) que
é tão verdade o que digo, quanto
parece impossível: ’stanca n’água a popa, qual
num seco estaleiro atracada. No
espanto persistem com golpes de remo e
tentam a todo pano prover a nau de impulso: heras
impedem os remos, gavinhas serpeiam recurvas, corimbos
fecundos adornam as velas. Racimos
circundam com uvas a fronte de Baco, que
agita uma hástea frondosa de pâmpano; tigres
em torno, sombras de linces surgem do vácuo, panteras,
corpos de feras deitadas. Homens
ao mar, que a loucura tomou, ou
medo imenso; e Médon
primeiro enegrece em
todo o corpo e, curva, a espinha se inflete; Lycabas
então:
“que milagre”, ele diz, "te
reverte?", mas rasga-lhe a boca o gritar, narinas
se curvam e a cútis se encrosta de rígida escama. E
Lybis, querendo soltar os seus remos, vê
rápido as mãos retraírem, mãos
já bem pouco, mais barbatanas. Outro tenta co’s braços tirar da
cordagem a hera, mas
braço nenhum ele encontra: o corpo truncado mergulha
no
fundo profundo das ondas, e ao ar ele ergue a
novíssima cauda forcada, com a curva dos cornos da lua.
Homens
saltando por todos os lados, mergulham e
espalham espuma marinha,voltam pro alto, imergem de novo,
retornam
das águas, brincam em danças e alegres atiram os corpos,
e
expulsam das largas narinas a água que tomam do mar. Éramos
vinte (tantos assim nossa nave levava), ficara
só eu, tremendo de gélido horror; mal
me refiz, e o deus então disse: "Espanta o pavor do teu
peito, partimos
pra Dia", e , lá chegando, o deus me inicia nos
ritos sagrados de Baco, que agora freqüento. Baco
& os Piratas Tirrenos (Ovídio,
Metamorfoses, III, vv. 597-691) Forte
petens Delum Chiae telluris ad oras
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