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GOLDING, SHAKESPEARE & O NARCISO DE
OVÍDIO* As the soule of Euphorbus
was thought to live in Pythagoras: so the sweete wittie soule
of Ovid lives in mellifluous &
honytongued Shakespeare.
Palladis Tamia: Wits Treasury, 1598 Arthur
Golding publicou sua tradução dos "xv. Bookes
of P. Ouidius Naso, into English meeter, a worke very pleasaunt and
delectable" no ano de 1567, impresso em Londres por William Seres.
Foi este que
Pound chamou, no ABC of Reading, "o mais belo livro da língua";
essa era sua opinião e "muito provavelmente a de Shakespeare também", e
consagrou 28 páginas da antologia de poesia em língua inglesa que
organizou com Marcela Spann ao trabalho de Golding1. A tradução ficou
famosa2 principalmente
pela coincidência de duas coisas: uma, a fama provavelmente exagerada de
que Shakespeare não sabia latim suficiente (a partir do comentário
despeitado de Ben Jonson, virtuose em latim e grego); e de que, portanto,
teria sido Golding o seu Ovídio. O
"English meeter" do frontispício do livro é o velho heptâmetro jâmbico,
que hoje encontra inúmeros detratores, por parecer um metro muito longo,
fastidioso, rude. Além disso, Golding utiliza rimas no esquema dístico, o
que, é óbvio, não existe no original; também aumenta consideravelmente os
versos originais, porque ainda não havia, ao menos eu suponho, esse
orgulho atual de se manter o número de versos, sílabas, ou de diminuí-lo,
o que demonstra fidelidade, virtuosismo, assegura a concisão que esperamos
das grandes obras, dos grandes tradutores, etc. A
novíssima edição do texto das Ovid's Metamorphoses (ed. 2000) traz
um ensaio de John Frederick Nims apropriadamente chamado "Ovid, Golding,
and the Craft of Poetry", em que o professor apresenta diversas falhas de
leitura e técnica do verso em Arthur Golding. Falhas de leitura quando o
tradutor não identifica os inúmeros jogos verbais pelos quais Ovídio é tão
famoso, o que inclui até mesmo aspectos iconográficos de invenção verbal;
falhas de técnica do verso quando Golding precisa encher o metro, ou enfia
palavras apenas para conformidade de ritmo e rima. Etc.
No primeiro caso,
o dos jogos vebais, Nims menciona o seguinte, no livro VIII, da construção
do labirinto em que Dédalo
lumina ... ducit in errorem variarum
ambage viarum. "Induz a
erro os olhos pelas vias de vários enigmas", numa tradução pedestre do
texto. Mas Nims chama a atenção do caro leitor para o aspecto engenhoso de
Ovídio indicar a confusão do olho na semelhança indiscreta entre
"variarum" e "viarum". Nims: "a própria dicção dramatiza as confusões do
labirinto". Vejamos o que fez Golding: (...)
He confounds his worke with sodaine stops and
stayes, And with great uncertaintie
of sundrie windy wayes ...
que perde o
visual sugestivo (embora eu acredite que seja difícil não apreciar em si
mesma a musicalidade desses dois versos). No segundo caso, Nims aponta um
verso na história de Faetonte — que quer conduzir o carro do Sol —, em que
Apolo, seu pai, lhe dá uma curta e concisa
advertência: Sors tua mortalis; non est
mortale quod optas. transformada por Golding
nestes longos versos: Thy state is mortall, weake
and frayle, the thing thou doest desire Is such, whereto no mortall
man is able to aspire (...) Nims
considera certamente uma virtude a concisão, e isso é uma lição clássica
da poesia, que vale igualmente para a tradução poética. Como Ovídio é um
poeta notável pelo estilo profuso, a segunda crítica pareceria
inicialmente equivocada se se pudesse pensar que Golding obedecia ao
estilo, não ao trecho. Mas Golding estava servindo apenas a ritmo e rima,
estendendo desnecessariamente o verso, e é evidente que não se trata de um
homem tão sofisticado na arte do verso quanto Ovídio3.
É preciso fazer notar isso ao menos em respeito a uma observação muito
interessante de Jorge Luis Borges. Borges está comentando a aparente
infidelidade das traduções de Ezra Pound, e calha o exemplo que encontra
em Chaucer, que "traduzia muito livremente; o árido aforismo hipocrático
Ars longa, vita brevis inspirou-lhe esta música melancólica:
The
lyf so short, the craft so long to lerne"4 interessantíssima, a
despeito mesmo do fato de aumentar consideravelmente o tamanho do ditado.
Importante é perceber que Chaucer5 "traduzia muito livremente"
porque mudava a linguagem da fonte para a índole da sua língua. Nims não é
indiferente a essa virtude, e é o que exalta no tradutor Golding. Pound
não tinha esses pudores, como vimos, e o louvava sem restrições.
Podemos dizer que
Shakespeare também praticava a arte de traduzir muito livremente,
num sentido amplo da palavra. Sem falar em Ovídio, poderíamos citar várias
canções e contos italianos, e Michel de Montaigne, entre vários outros a
partir de quem traduz, adapta, emenda, transcreve, recria, emula, alude,
cita, comenta, imita, etc. De Montaigne, por exemplo, é sabido que
Shakespeare tomou emprestado um trecho da tradução de John Florio,
Essays, de 1603, particularmente o capítulo XXX, "Dos Canibais". O
trecho sobre a tribo de tupinambás brasileiros, cujos índios foram parar na côrte francesa:
"it
is a nation, would I answer Plato, that hath no kind of traffic, no
knowledge of Letters, no intelligence of numbers, no name of magistrate,
nor of politic superiority; no use of service, of riches or of poverty; no
contracts, no successions, no partitions, no occupation but idle; no
respect of kindred, but common, no apparel but natural, no manuring of
lands, no use of wine, corn, or metal (...) How disonant would he (Plato)
find his imaginary common commonwealth from this perfection?"6 Shakespeare tomou
o discurso emprestado para The Tempest e o pôs na boca de Gonzalo,
que o profere logo após o
naufrágio causado por Próspero. GONZALO: I' th'
Commonwealth I would (by contraries) Execute all things: for no
kind of traffic Would I admit: no name of
magistrate: Letters should not be
known: riches, poverty, And use of service, none:
contract, succession, Bourn, bound of land,
tilth, vineyard none: No use of metal, corn, or
wine, or oil: No occupation, all men
idle, all: And women too, but innocent
and pure: No
sovereignity. Muito a
propósito, porque a peça, assim como várias outras obras (como vemos já no
Pantagruel de Rabelais, e no próprio texto de Montaigne), apresenta
o contato com o Novo Continente. Essa peça calha de ser, sabidamente
também, uma das mais ovidianas de Master William. Há um detalhe curioso de
tradução de Shakespeare ligado a esse fato: Augusto de Campos traduziu uma
das canções de Ariel ("Full fathom five thy father lies") e
introduziu bem oportunamente um pequeno índice crítico que
aproxima os dois autores, mas que passa em geral
despercebido: Teu pai repousa em paz a
trinta pés: De seus ossos coral se
fez: Aquelas pérolas que
vês Foram seus olhos uma
vez; Nada que é dele se
perdeu, Metamorfose o
reverteu Em algo estranho e
nobre. Sereias tangem a seu
dobre: Dlin-dlão. Silêncio! o sino
agora, Dlin-dlão, ora. e o original de
Shakespeare: Full fathom five thy father
lies, Of his bones are coral
made: Those are pearls that were
his eyes, Nothing of him that doth
fade, But doth suffer a
sea-change Into something rich, and
strange: Sea-nymphs hourly ring his
knell.
Burthen: Ding-dong. Hark now I hear them,
ding-dong bell. O verso
que assinalei em itálicos na tradução e no original demonstra o que eu
disse: Augusto de Campos traduz sea-change por "metamorfose", e
estabelece com discrição e engenho a ligação entre os dois poetas. Seria
possível ainda examinar as relações dos discursos de Próspero ao deixar a
magia e o trecho de Medéia nas Metamorfoses, como fizeram vários
críticos, examinar a peça dentro da peça de Midsummer night’s dream
(os atores ensaiam "Píramo e Tisbe", outro conto das Metamorfoses),
Titânia se apaixonando pelo que há de mais próximo a uma transformação
física no palco de Shakespeare, o ator vestido com uma cabeça de burro,
etc. Poderíamos também comparar o The Rape of Lucrece com o rapto e
conseqüente estupro de Koré-Prosérpina por Hades, e assim por diante.
Seria uma conversa virtualmente infinita. O importante é perceber o quanto
Shakespeare aproveitou de Ovídio num sentido totalmente diverso do de
Dante. Para Shakespeare, Ovídio é um semelhante no apreço pela
diversidade, pela ação dramática, pelo estilo ornamental e
retórico.
As Metamorfoses haviam sido traduzidas por Arthur Golding,
como disse, e publicadas no ano de 1567. Ainda que consideremos exagerada
a afirmação de Jonson sobre o "pouco latim" de Shakespeare, é evidente que
conhecia e usava a tradução não só como leitura prazerosa de Ovídio, mas
também como fonte para apropriações e linguagem. Muito mais hábil que
Golding, infinitamente mais elegante, é, entretanto, bastante aceitável
que Shakespeare apreciasse a musicalidade inglesa e o sabor da versão de
1567. Há mais do que traços estilísticos de Golding em Shakespeare. Por
exemplo, o trecho de Medéia citado linhas atrás ganha comentário de Nims
justamente por demonstrar o eco dos versos de Ovídio (Golding), que faz
Medéia dizer, "auraeque et venti montesque amnesque lacusque,/dique omnes
nemorum, dique omnes noctis adeste," isto é, "brisas e ventos, montes,
rios e lagos,/e todos os deuses dos bosques, e todos os deuses da noite,
vinde". A
tradução de Golding, que geralmente acrescenta adjetivos e adapta, segue
assim: "Ye Ayres and windes: ye Elves of Hilles, of Brookes, of Woodes
alone,/Of standing Lakes, and of the Night approche ye everychone."
Shakespeare tomou daqui o início do discurso de Próspero, como vemos: "Ye
elves of hills, brooks, standing lakes, and groves." Jonathan Bate, em seu ensaio
na edição de 2000 da tradução de Golding, apresenta esse trecho e aponta
para os deuses de Ovídio que foram transformados em "elfos" na tradução, e a manutenção deles
por Shakespeare, que, além disso, ainda mantém o acréscimo de "standing"
em companhia de "lakes". Bate prossegue na comparação, mas fico por aqui.
Constata-se facilmente que o uso que "o maior dramaturgo inglês" faz do
sulmonense é menos sistemático do que o de Dante, que utiliza tanto a
idéia de metamorfose quanto o engenho de Ovídio para desenvolvimentos
retóricos e teológicos exclusivos de seu poema. Shakespeare também citou
Ovídio, isto é, se creditamos a autoria de Titus Andronicus a ele.
Curtius duvida7,
e Eliot, citado por ele em nota, considera essa "one of the stupidest and most uninspired
plays ever written". Toda a história do estupro de Lavínia e da
monstruosidade de os estrupradores cortarem-lhe a língua e as mãos — para
que não tivesse meios de contar o quê, nem de quem o sofrera — emparelha
Shakespeare e Ovídio, pois ela folheia as Metamorfoses e indica a
história de Tereu e Procne, idêntica à sua própria; seu pai, Andronicus,
encontra os criminosos, decepa suas cabeças e prepara com elas uma torta,
assim como Procne que, quando soube que seu marido Tereu estuprou e
mutilou sua irmã Filomela, preparou o próprio filho para que ele comesse.
Se
Ovídio, em sua época, foi conhecido como poeta do estilo ornamental, essa
é uma característica que divide certamente com o "honeytongued", o
"mellifluous" Shakespeare, assim como Francis Meres assinala na epígrafe a
este breve comentário; além do mais, ele, Shakespeare, foi um homem do
período chamado isabelino, que quase se confunde com a idéia de estilo
ornamental em inglês. A tradução do
Narciso Conheço outras
duas para o português: a de António Feliciano de Castilho e a de Haroldo
de Campos. Embora em geral eu aprecie muito o trabalho tradutório do
romântico português, as Metamorfoses foram seu fracasso (dizem que
seu Fausto também não presta, devem estar certos). O trecho do
Narciso é um dos melhores e, mesmo assim, inteiramente desonrosa a
comparação com o exemplar de Haroldo de Campos, que realizou um trabalho
notável nesse episódio, infelizmente, como já disse, talvez o único que
tenha traduzido8. E é
notável por uma série de motivos: o primeiro, como escrevi no comentário à
minha tradução de "Baco & os Piratas Tirrenos", porque
inteligentemente percebeu & adaptou os espelhamentos verbais da obra
em latim, coisa que passou totalmente despercebida por Castilho. Como
vocês poderão notar confrontando a minha tradução e a de Haroldo, há
alguns trechos em que utilizei suas soluções (como bebe/embebe, por
exemplo); outro motivo é que optou pelo verso de doze sílabas, que lhe
permitiu maior flexibilidade do que as dez de Castilho; porque, também,
tomou muito cuidado com o estilo de Ovídio, interferindo menos com ele do
que com o de Homero, na Ilíada. Haroldo, no artigo que publicou
junto com o "Narciso" na Folha de São Paulo, escreveu que "tinha
presente" o trabalho de Castilho, que chamou de antigo, "mas de boa cepa":
evidentemente, ao fim de seu próprio trabalho, deve ter tido a certeza de
que concluía algo muito melhor. A minha tradução
respeita os mesmos padrões gerais das que apresentei anteriormente. Há a
atenção específica para os jogos de espelhamento, como disse, que
mimetizam a famosa história do jovem que ama a si mesmo refletido num
lago, contada nos versos. (Metamorfoses,
III, 407- 473; tradução de Dirceu Villa) Fonte
sem limo, nítida prata era a água a que
não vinham pastores, nem vinha pastar o
rebanho montês, nem gado aqui se agregava, nem pássaro
ou fera,
nem da árvore um ramo sequer turvara-lhe o leito jamais;
grama ao
redor, ao alento do arroio e a
floresta impedia que o sol aquecesse este sítio. Aqui o
rapaz, do calor e do esforço da caça cansado, vem se
deitar, pela feição do lugar e em busca da fonte; e
enquanto sacia uma sede, outra sede o assalta, e
enquanto ele bebe o embebe a imagem formosa, ama a
esperança sem corpo, e dá corpo ao que é sombra. Estático
diante de si, imóvel e suspenso, detém-se,
uma estátua marmórea de Paros; debruçado
no chão, contempla astros gêmeos, seus olhos; seus
cabelos, dignos de Baco e dignos de
Apollo; as faces
imberbes, o ebúrneo pescoço, os lábios perfeitos,
e a pele que mescla neve e rubor; admira-se
todo com aquilo que nele admiram: imprudente,
cobiça-se; louva, mas louva a si mesmo, quando
suplica, o suplicam; fogo ele inflama e no fogo ele
arde; quantos
beijos sedentos não deu na mentira da fonte, quantas
vezes não imerge seus braços no meio da água para
abraçar o pescoço que via, mas sem se alcançar! Aquilo
que vê, ignora; mas o que vê o consome, os olhos
também, enganados no erro, o incitam. Crédulo!
fugaz simulacro te frustra no enlace; queres:
não há; o que amas: afasta-te e foi-se! Esta
sombra, que miras, reflete tua imagem: de si
nada tem; contigo ela vem: fica, se estás, partia
contigo, pudesses partir! Nem as
searas de Ceres nem sono podem
tirá-lo de lá, que estendido na relva admira
incansável a ilusão, perdido
nos seus próprios olhos; levantando-se
um pouco, ergue os braços ao bosque: "Acaso
houve amor mais cruel, ó florestas? sim, vós
sabeis, vós que fostes refúgio oportuno para muitos. Acaso há
memória de tanto tormento nessa vida que é vossa de
séculos? Me
agrada o que vejo, e o que vejo e me agrada não
posso encontrar"
— em tais erros insiste o amante —, "a dor
todavia é pior: sequer nos separa o imenso de um mar,
ou
longas estradas ou montes, ou muros com portas trancadas;
a
fímbria da fonte nos tolhe! ele também me deseja,
pois quando
aproximo meus lábios da líquida linfa, junto se
inclina a beijar minha boca. Tocá-lo
é por pouco; mínimo o que nos impede o amor. Vem
aqui, quem quer que tu sejas! Me iludes por quê, menino sem par,
quando
procuro-te tanto? idade nem forma tenho de
te afugentar, amado que fui pelas ninfas também! Teu
vulto amigo promete não sei que esperança: quando
te estendo meus braços, estendes-me os teus, quando
sorrio, sorris; lágrimas, quando chorei, choraste
também; e, no mover da tua boca formosa adivinho as
palavras que dizes, sem que me venham ao ouvido. Este sou
eu! já não me engana os sentidos a imagem; Ardo em
amar-me: ateio este fogo e me firo. Que
faço? peço e sou o que peço? e pedir pelo quê? trago
comigo o que quero: minha riqueza me torna um
pedinte. Ah,
se agora pudesse partir do meu corpo! Inédito
isso num amante: querer que lhe deixe o amor. Sofro
e se vai meu vigor, e nem muito tempo de vida me
sobra: expiro na flor da minha idade. Não
me pesa morrer, alivia-me as penas; ao
meu amado, mais vida eu queria. Juntos
morremos, porém, num só suspiro concordes." (Metamorfoses,
III, 407- 473)
Fons erat inlimis,
nitidis argenteus undis, nam quotiens
liquidis porreximus oscula lymphis,
Suponho que todos saibam do fracasso que foi o
futurismo histórico, não na proposição de meia-dúzia de idéias muito boas
e eficazes, mas na maneira como essas idéias chegaram ao papel como obra
escrita (no caso da escultura, no entanto, é um dos modernismos mais bem
aplicados e com resultados mais significativos), e na pouca inteligência
que foi propor uma coisa a ser vista ironicamente em algum ponto do futuro
como um apego risível a certas maravilhas da, por assim dizer, "ciência",
já apenas peças de ferro-velho. Resumindo, era um negócio
natimorto. Por
outro lado, falo do vivíssimo Torres como de um futurista certeiro na
poesia. Há uma pequena história sobre isso, é claro. Tive
contato com a poesia dele, se não me engano, no ano de 2002 e pela
internet. Em 2004, no entanto, ele esteve aqui no Brasil para o lançamento
da revista nova-iorquina Rattapallax, em seu número 10, que tem
distribuição nacional da Editora 34. Muy bien, organizaram uma
festa no Sesc Pompéia, com mais de uma dezena de poetas brasileiros e
estadunidenses, entre bons e ruins. Tinha de tudo, incluindo eu
mesmo. E, como
eu disse, havia poetas bons e ruins, mas o caso é que quando Torres foi
para o palco "fazer a sua coisa", acompanhado apenas de um rádio com uma
gravação mais ou menos de ruídos, ele parecia a única coisa viva em
toda aquela apresentação. Por dois motivos: um, ele é um dos mais
destacados e peculiares praticantes desse tipo de poesia com vários
adeptos nos EUA, que inclui a performance como parte quase
indissociável de alguns trabalhos; outro, que sua poesia pessoalíssima e
extremamente precisa (inclusive no modo de a dizer) tem um impacto
imediato em qualquer pessoa que tenha vivido uns três anos em qualquer
metrópole: um acúmulo de pequenos sons em vários tons diferentes, como
múltiplas vozes se interrompendo e se cruzando, mesmo assim construindo
curiosa trama de som e sentido, quase música, extrapolando em muito a
idéia do "he does the police in different voices" de "The Waste Land", de
T. S. Eliot. Óbvio,
John Cage é uma referência, assim como cummings, o design gráfico
do futurismo, etc. Mas isso vira outra coisa, e não temos também aquela
reivindicação midiática, tão comum no Brasil: Torres utiliza o instrumento
de trabalho que lhe for necessário, sem fazer disso uma bizarra plataforma
de política cultural. O que por outro lado põe um ponto de interrogação na
cabeça do leitor, que se pergunta: "Então como assim, futurismo?"
A
sensação de funcionalidade daquele discurso extremamente fragmentário e
musical, com acompanhamento de ruídos, vem do modo preciso como Torres
utiliza sua técnica8 e daí a impressão única que
se teve de uma apresentação dessas, mesmo que outros poetas tenham vindo
com banda inteira, ou que outros cantassem. Naquela ocasião (tínhamos nos
encontrado no hotel onde ele estava com os poetas Yusef Komunyakaa, Anna
Ross e os editores da Rattapallax) ele me deu um de seus livros e
um CD com seus poemas sonoros. O que alguns chamariam "experimento" em seu
CD não passaria como coisa totalmente estranha a, por exemplo, um CD do
Radiohead — por isso também eu acho que as performances de Torres
encontram um lugar plausível dentro de nossas mentes, quer dizer, elas não
surgem num vácuo total de referência. Na matéria impressa isso fica ainda
mais claro. Seu
livro All-Union Day of the Shock Worker (Roof Books, New York,
2001) é um verdadeiro desafio gráfico, intelectual e musical.
Infelizmente, não tenho como apresentá-lo graficamente nesta página, mas
pense numa radicalização do processo tipográfico futurista, que compunha
hierarquias sonoras e visuais com os tipos na página, e você terá uma
idéia. Há até mesmo um poema, entre a ironia e a homenagem, "A Nuyo
Futurist’s Manifestiny" que condensa a história toda no seguinte:
"FUTURISMO ISSA NOW ONLY HERE/BUT IT IS ISN'T HERE YU KNO?". Está e não
está ao mesmo tempo, porque Torres não propõe um futuro desejado e
maquinal, mas reconhece o aspecto chocante, sintético e simultâneo do
movimento frenético (mimetizado por palavras e tipografia) na maneira como
o torna linguagem estranha, mas plausível, para a sensibilidade atual. Se
não, vejamos uma possível explicação num pedaço do meu poema predileto do
livro, chamado "Canyon Suite": She:
"...&
I stare
at the world
in my mirror, &
every day is
tomorrow,
& I stare
at tomorrow,
&
my world
wants to end,
& I drown
what I seek,
&
I
want to complete this reach
reach the
world for tomorrow…"10
Para nós
que usamos o português para falar e escrever, existem dois livros que
tentam definir, a partir da discussão, um método para qualificar os versos
dessa língua. O primeiro deles foi escrito por António Feliciano de
Castilho (de quem tenho falado nos textos sobre Ovídio), o infelizmente
célebre pela ridícula questão Coimbrã, contra Antero "Vencido da Vida" Quental.
Ele nos deixou um tratado de versificação portuguesa propondo que paremos
de contar o verso em sua última sílaba tônica, justificando-se com a
seguinte pérola: "aí o poeta já cumpriu seu dever". O outro foi o Prof.
Said Ali, que contestou Castilho insistindo na contagem da sílaba átona,
sob os argumentos de termos de novo o chamado verso grave (o que
acaba com um desenho suave no fim contadamente átono) e de que não faz
sentido essa história de obrigação, e de se ignorar uma ou duas sílabas
finais na contagem, etc.
No prefácio a uma das edições do pequeno volume do
Prof. Said Ali, Manuel Bandeira, discípulo do provecto professor dos
tempos do colégio Pedro II, diz preferir a versão de Castilho, e dá como
exemplo um problema que ocorreria com a contagem dos versos de Casimiro de
Abreu, num poeminha famoso, que deve ser entendido como um dissílabo,
porque: Pensavas, Cismavas, E
estavas Tão
pálida Então;
Qual
pálida Rosa Mimosa
(...)
o sétimo verso citado se
beneficia do esdrúxulo anterior, que faz sobrar a sílaba –da para
complementar a contagem seguinte. Depois, Bandeira diz que na verdade
todas as coisas, número de sílabas, aliterações, assonâncias, e assim por
diante, não fazem mais do que servir ao ritmo, "finalidade soberana na
estrutura formal do poema". Acrescenta umas palavras carinhosas e está
acabada a conversa. Mas eis aí o que ele disse
do ritmo, com palavras solenes: "finalidade soberana na estrutura formal
do poema". Quem disse isso poderia, com mais um gesto de boa-vontade, ter
insistido que os dois modelos não são, em essência, diferentes. A
substância do que diz Bandeira é, traduzida num jargão mais pedestre:
"Tanto faz como se conte o número de sílabas, não se compõe assim, e isso
pouco importa porque o ritmo é a alma do negócio." Chegamos a alguma
clareza. Alguém só se preocupa com a
questiúncula da tônica final, ou da átona, se pensa que a métrica pode ser
simplesmente acentual ou silábica e para ouvidos cuja maior sutileza
sonora é uma martelada. E nunca é. Mesmo os ouvidos mais anestesiados para
a duração poderiam conceber diferentes tempos de pronúncia das sílabas, em
diferentes circunstâncias.11 E daí que um poema tenha
versos de onze, doze e treze sílabas, pelo regime de Castilho ou Ali? O
que interessa é a qualidade dessas sílabas na composição da música da
frase, e não a paciência imbecil de um poeta que pare pra contar nos dedos
ou o faça de cabeça, ou cujo traquejo, aliado ao amor da leitura, o tenha
levado a sempre acertar o número, como qualquer aluno de segundo grau
poderá fazer decassílabos perfeitos depois de ler Os Lusíadas por
uma hora: o sentido da coisa está no ritmo. Os poetas não são contadores,
não estão fechando o caixa de um bar. Ou, digamos, os bons não o
fazem. Um hexâmetro grego tem 15,
dezessete sílabas; se forem os de uma épica clássica, terão um ritmo
regular dactílico, com pequenas variações musicais. Ou seria o caso de
pedirmos a Homero que enfiasse seus versos num molde de 12 sílabas,
digamos, numericamente "regulares"? Alberto de Oliveira achava frouxos os
versos de Camões nos Lusíadas. Os versos de Alberto de Oliveira,
além de não possuírem substância, eram duros como um nervo
exposto. A "contagem" puramente
numérica não é, portanto, algo que vá à essência do problema. E podemos
acrescentar que ela deseduca, endurece os ouvidos e faz com que as pessoas
acreditem tolamente que a obediência a esses padrões empedernidos
demonstre algum tipo de excelência. Hoje é muito difícil que um aluno do
chamado "ensino médio" entenda o que é ritmo, métrica, ou sequer saiba
porque deve ficar contando e conferindo uma enfiada voraz de dissílabos,
decassílabos, etc. Não haveria dilema se ele soubesse que a escansão
revela o andamento rítmico do poema, o seu padrão musical, e só existe
para comprovar isso que os nossos ouvidos já nos
dizem. Enfim, chegar ao fim do
verso com dez, doze sílabas pouco importa. Importa é saber ouvir. E saber
compor como se ouviu. É aquela velha história de Valéry: perguntaram a ele
como era o seu "processo de criação", ou o que o valha. Bem, ele deu o
seguinte exemplo, dentre muitos possíveis: estava andando um desses dias e
um ritmo veio à sua cabeça. Imediatamente, para melhor mantê-lo, começou a
marcá-lo com a bengala (in illo tempore, os cavalheiros andavam
acompanhados de sua bengala). Sem palavras. Dias depois, naquele ritmo
começaram a se encaixar as palavras, e assim o poema começou a ser
composto. Essa história não precisa, é
claro, do carimbo de um cartório: vale pelo sentido educativo. *Outros textos da série: "Baco & Os Piratas Tirrenos", das Metamorfoses de
Ovídio |