©milton césar pontes                                         
 
 
 
 
 
 
 

 

 

 

 

Rodrigo de Souza Leão — Joaquim Palmeira, onde está Wilmar Silva?

 

Joaquim Palmeira — Maravilha responder onde está Wilmar Silva, eu que aprendi com esse menino a caminhar sozinho em busca de gente que é poeta. Mas caminhei o suficiente para também abandoná-lo na memória, é claro. Sendo a memória mais viva que a própria vida, Wilmar Silva, em memória. Joaquim Palmeira não é um ladrão de fogo, mas é um ladrão de Wilmar Silva. Imagine! Sr. Rodrigo, em 2006 o errante Wilmar Silva lançou Estilhaços no Lago de Púrpura, no Centro de Cultura Belo Horizonte, com 30 participações especiais na leitura pública in concert. Um ano depois, Joaquim Palmeira lança Estilhaços no Lago de Púrpura no mesmo lugar, assinando a autoria do livro. Sim, Joaquim Palmeira é o meu nome original, Joaquim de ascendência familiar, e Palmeira de origem de lugar.

 

 

RL — Quais as diferenças entre a primeira edição de Estilhaços no Lago de Púrpura e a segunda?

 

JP — Nenhuma. E todas. Nenhuma porque os poemas — de um só fôlego nascidos na noite madrugada de 16 de março de 2003, depois de Cristo — de Estilhaços no Lago de Púrpura são os mesmos, mas para mim isso é uma resposta para quem admira a sede e não a água. Todas as diferenças, portanto, porque o que você chama de segunda edição é, na verdade, a primeira edição, ou a estréia de Joaquim Palmeira. Houve, sim, uma edição que pertence a Wilmar Silva, com imagem de Egon Schile na capa e projeto gráfico de Luciana Inhan e Ronald Polito, posfaciado também por Polito. Agora é Joaquim Palmeira quem iauretê com Estilhaços no Lago de Púrpura, com a imagem de seu corpo em liberdade, fotografado por Branca Maria de Paula, livre como uma criança, além de todos os poemas impressos no verso das folhas, provocando uma queda imaginária no abismo, que é a projeção de um corpo vôo. Revestido de nu.

 

 

RL —  Qual a influência do Rio Paranaíba em sua obra?

 

JP — Responderei sempre a essa pergunta dizendo que Rio Paranaíba é a minha fonte original, e ninguém, jamais, deveria abandonar ou esquecer as primeiras águas da vida. Claro, aqui estou falando de uma memória não apenas afetiva, mas de memória física. Escrevo por êxtase, mesmo antes de deixar o lápis nas letras, sou poeta, verbo de um corpo em estado de sexo com a poesia, e os poemas escritos por mim, nascem de uma afrodisia no topo do desejo. Portanto, Rio Paranaíba é mais que uma geografia ou um espaço mítico da minha infância, Rio Paranaíba é, ao mesmo tempo, símbolo de uma realidade física, elevada à transcendência. E aqui, ao escrever, por exemplo — transcendência —, estou dizendo que a minha aldeia poética não é aquele monte parnaso, como talvez se arvore a ignorância.  

 

 

RL — Por que a escrita é um "lago de púrpura"?

 

JP — Estilhaços no Lago de Púrpura não é um livro de poemas. Seria um pensamento minado entender Estilhaços apenas como uma experiência de escrita poética. Penso que a vida são víveres de poemas. E qualquer coisa assim, volátil, pode se tornar a morada de uma outra vida nascente, escrever é, portanto, habitar o ventre da mãe. Sim, ao manifestar a origem dos poemas de Estilhaços no Lago de Púrpura, alguma coisa que talvez eu possa chamar de protolinguagem, por exemplo, aconteceu não apenas em meu corpo, até porque é impossível separar o corpo daquilo a que posso chamar de alma, ou espírito, ou nirvana, ou corpo líquido, ou um nada que é mais infinito — assim, quero dizer que a minha escrita não é surreal ou apenas uma viagem em liberdade, mas uma para-realidade em liberdade livre, para puxar Artur Rimbaud. Jorro aqui é libertação de linguagem para construção de uma linguagem radicalmente original, o ser humano em estado de árvore, lótus de mil pétalas.

 

 

RL —  Como os reinos animal, vegetal e mineral são representados na sua escritura?

 

JP — Se escritura é uma avalanche de papiro, escrevo como quem perde o humano e se torna multiplicável em animal, vegetal e mineral. Sou o poeta na contracorrente, a exemplo de Estilhaços no Lago de Púrpura, que nasceu e foi possível entre ciclones na sintaxe dos sentidos. Penso que escrever é quebrar a ordem entre um mais um é igual a um, portanto, sou um animal, sou um vegetal, sou um mineral, sou um selvagem em estado humano. Penso em Marina Tsvetáieva, e no Brasil índigo mestiço, a minha vida são as nossas indianias.   

 

 

RL —  Como a solidão é retratada nos seus poemas?

 

JP — A solidão é um encontro do eu exterior com o eu interior, nesse intervalo ou nessa passagem, ou melhor, na intersecção que é também a fricção do mundo com a vida, o ser humano se expande acometido diante do pensar que é o indício dos sentires. Em Estilhaços no Lago de Púrpura, quanto mais se deseja o encontro mais o encontro se torna inatingível. Estilhaços é mais que um livro de poemas, talvez as imagens escritas de uma solidão derramada em torno de mim. Se realmente Estilhaços no Lago de Púrpura apresenta o poeta em seu réquiem, como entender que é preciso encontrar com aquele que fez parar o sol: Joaquim Palmeira. E o incrível é que as pessoas pensam acometidas pela natureza indevassável das coisas e da faculdade de pensar. Digo que Wilmar Silva chegou ao topo da linguagem que é a solidão de uma poética em errância, o que provocou o abandono do próprio nome para nascer Joaquim Palmeira. Solidão é experimentar durante toda a vida o desejo que é também o desespero em dividir a propriedade de uma poesia original, não diferente, original não apenas no sentido de preservação de um ambiente, original quando se pensa em Novalis, dizendo que a poesia é a religião original da humanidade. Ou mesmo quando Artur Rimbaud fala em liberdade livre, isso, uma vidência de lince esmerada em poesia.      

 

 

RL —  O poeta é um ser especial e incompreendido? Deve ser a antena da raça?

 

JP — Especial talvez porque a sua fonte de trabalho são as palavras. E o lavrador, mais especial ainda com as enxadas. És-não-és: o poeta é talvez um ser especial, porque o mundo e a vida são a origem para a construção de uma linguagem que contenha o mundo além do mundo e a vida além da vida. Quase toda a minha poesia é uma poética de invenção radicalmente inassimilável, por se tratar de uma língua imaginária, inventada, artificial, a minha poética é um idioma com seu léxico e sua sintaxe radicalmente ousados, ousadia no sentido de preservar e expandir a origem quando o desejo é desesperador. Ao publicar Anu (Orobó Edições, 2001), quase ninguém escreveu sobre o poema, à exceção de Alécio Cunha e Ricardo Corona, que produziram e publicaram resenhas sobre esse não-texto de biopoesia. Sobre Cachaprego (Anome Livros, 2004), apenas José Aloise Bahia se manifestou com um artigo divulgado pela internet. A respeito de Çeiva (Mulheres Emergentes Edições Alternativas, 1997), ninguém arriscou uma linha. Talvez por vidência sine qua non, o poeta é a antena da raça, isso para lembrar dois redivivos que se tornaram ícones, Ezra Pound e Arthur Rimbaud. Mas como esquecer todas as letras grafadas pelos anônimos em busca de poemas? Penso nessa poesia em estado de poema, nesses poetas grávidos de concreções.    

 

 

RL —  Como se dá o processo de construção de sentido na sua poética? Forma é conteúdo?

 

JP — Difícil responder a sua pergunta, Rodrigo. Difícil, porque isso empreende não apenas a revelação de um processo de criatividade, lembrando aqui Fayga Ostrower. E mais difícil ou quase impossível, ao pensar que a minha poesia é uma poesia que nasce em uma região interior e anterior a tudo que se possa imaginar, e sua pergunta resvala além dos materiais que são as letras, porque a pergunta é sobre o sentido de minha poética. E embora perdidamente apaixonado por poesia, as minhas primeiras referências não são as poéticas. Sim, eu devorei os ícones da poesia, de Minas Gerais, do Brasil, das Américas, do mundo. Mas aprendi, quase sem perceber, que a poesia vem de uma região não habitada por seres humanos que somos nós, a poesia é o inexplicável, aquilo que é secretamente perigoso, e quanto mais se mergulha em suas águas, mais fôlego se ganha rumo ao infinito, ou limites ao léu, como escreveu o autor de Catatau. So poetry is to inspire. Mas esse emaranhado é apenas uma provocação ao meu trabalho de artista, sou um corpo de ferramentas, trabalhando as palavras como elementos tangíveis ao alcance das mãos. As melhores palavras na liberdade mais selvagem. Mistura de viagem e olaria.                       

 

 

RL —  O que deve ter um bom poema para você?

 

JP — Inexplicavelmente um poema que me arrebata é um poema que mexe com o meu sangue, aquele poema que me provoca ao extremo, que me faça bater a cabeça nas paredes do invisível. Poesia não é para ler, e nem poema é para ler, poema é para vibrar as retinas e parar os olhos no desenho de letra por letra, construindo sua viagem na escrita dos sentidos, assim, um poema para arrebatar os sentidos humanos precisa ser um poema humanamente derramado de humanidade. E mais: radicalmente devastador. Qualquer coisa sentida por todos e escrita por todos, mas como se fosse sentida pela primeira vez e escrita pela primeira vez. Falo aqui de poema, sem adjetivo, nem precipício ou vitupério.   

 

 

RL —  Para que serve a poesia?

 

JP — Sim, a poesia serve para mostrar a vida à própria vida, o corpo ao meu próprio corpo, o espírito ao próprio espírito, a existência ao ser humano, enfim. Mas se realmente a poesia serve de espelho ao mundo e suas realidades, a poesia é um dom, a exemplo da vida-desespero que viveu Marina Tsvetáieva. Tsvetáieva incorpora vida e linguagem, exemplo também em Mário Faustino, que falou de uma vida-toda-linguagem. Ou Rainer Maria Rilke, que entendia escrever em estado de cio. Será mesmo possível uma poética apenas matemática, um cálculo, uma álgebra, uma geometria. O escultor Amílcar de Castro é talvez um exemplo de criação no centro de uma gravidade entre aquilo que nasce do interior do artista e aquilo que o artista apreendeu através dos sentidos. A poesia é um abismo e serve para revelar que Ícaro existe e 14 bis também.             

 

 

RL —  Por que ser um poeta lírico?

 

JP — Se você adjetiva o poeta, você o torna insubstantivo. Patativa do Assaré é um poeta. Alberto Pimenta é um poeta. Gary Snyder é um poeta. Arthur Rimbaud é um poeta. Oliverio Girondo é um poeta. Wilmar Silva é um poeta do centro radical. Joaquim Palmeira é um ladrão de Wilmar Silva. Emily Dickinson é uma poeta. Hilda Hilst e Orides Fontela são poetas. Walt Whitman é um poeta ou é um poeta lírico? Rainer Maria Rilke é um poeta. Haroldo de Campos é um poeta ao escrever Galáxias. Paulo Leminski é um poeta ao escrever Catatau. Mas Haroldo de Campos e Paulo Leminski são poetas antes e depois de Galáxias e Catatau? E Charles Baudelaire e Vladimir Maiakovski. E Silva Alvarenga é um poeta ou é um lírico com sua Glaura. Waly Salomão, com suas trovoadas, é um poeta ou um lírico. Se fomos expulsos, somos a vivenda de um invisível paraíso artificial. Milton César Pontes é um poeta. Luiz Edmundo Alves é um poeta. Acabei de conhecer Guerra, inédito de Gustavo Cerqueira Guimarães e Gustavo é um poeta. Reynaldo Bessa é um poeta. Words set to music. Wagner Moreira é poeta. Et cetera. Etc. Etc. Sem escrever o próprio nome, Antônio Sezostre é um poeta. Difícil é escrever um poema, construir uma poética autoral como eu desejo desesperadamente. Sou um lírico por isso, porque acredito em dom e vivo desesperadamente em busca de meu dom.        

 

 

RL —  Você se considera um poeta de invenção?

 

JP — Eu não me considero nada, Rodrigo. Eu sou o mais interessante poeta do Brasil depois da chamada geração marginal. E por favor, entendam interessante na constelação de astros maçãs, cachos romãs. Talvez interessante, inclusive, porque ninguém quer conhecer a poesia que escrevi quando Wilmar Silva. Tanto é que abandonei Wilmar Silva depois de Estilhaços no Lago de Púrpura, e agora sou um ladrão de Wilmar Silva, com Joaquim Palmeira. Experimental, sim, mas é o amor desesperado que me torna humano e sagrado na poesia, sou um poeta no abismo da invenção, e poderia responder que conheço quase todos os experimentais e muitos me parecem previsíveis e racionais, quero misturar as coisas sem jamais perder a çeivageria.    

 

 

RL — O que é mais apropriado ser você ou ser outro?

 

JP — Sou Antônio Sezostre e sou Wilmar Silva. Sou Ovídia Ribeiro e sou Wilmar Silva. Sempre fui Joaquim Palmeira. E agora sou Joaquim Palmeira. Se eu disser que sou Arthur Rimbaud, sou um vívido. Sou cernes e medulas e não sou Ezra Pound. Sou Dríade. Sou Jade. Sou uma natureza da natureza. Sou uma letra, uma palavra, um poema, a poesia. Sou ninguém, Rodrigo, sequer sou eu e meus inimagináveis eus.     

 

 

RL —  Com quantas metáforas se faz um poema?

 

JP — Indissoluvelmente um poeta se torna poeta através de um dom domável ao trabalho.     

 

 

RL —  Qual o mote que o acompanha no momento?

 

JP — Depois de uma dúzia de livros de poemas — Lágrimas & Orgasmos, Águas Selvagens, Dissonâncias, Moinho de Flechas, Cilada, Solo de Colibri, Çeiva, Pardal de Rapina, Anu, Arranjos de Pássaros e Flores, Cachaprego, Estilhaços no Lago de Púrpura —, além de performances híbridas na dança do corpo e da voz, acabei no emaranhado de um nó, ou um suicídio ou um abandono, que signifique começar a minha vida de poeta. Deixei de assinar Wilmar Silva com a morte de meu pai, um lavrador que viveu toda a vida com as mãos na enxada, e nasceu o meu nome original, Joaquim Palmeira. Talvez seja mesmo difícil no mundo de hoje entender por que um poeta abandona o seu nome de batismo e passa a assinar o nome original. Joaquim Palmeira é um ladrão de Wilmar Silva, um cachorro de mil bocas. Portanto, com Joaquim Palmeira, entendo Wilmar Silva em memória, acabou, e acabou tarde porque nasci em 1965, e tudo o que consegui sendo o poeta e performer Wilmar Silva não é suficiência para o meu desejo-desespero ao mostrar a minha experiência de artista. Portanto, é um começo ou re. Mas não pedirei a ninguém que esqueça o poeta Wilmar Silva, apenas não sou mais o poeta Wilmar Silva. Sou Joaquim Palmeira.                  

 

 

RL — Qual o papel do escritor na sociedade?

 

JP — Sociedade é um conjunto. Aqui em Belo Horizonte sou curador, desde a estréia, em 05 de julho de 2005, do projeto de leitura, vivência e memória de poesia — "Terças Poéticas" — uma realização da Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerias, através de uma parceria entre o Suplemento Literário e a Fundação Clóvis Salgado. É uma viagem híbrida com a poesia, cento e vinte poetas participaram e noventa e uma homenagens aconteceram, em duzentas e onze apresentações a muito mais de dez mil pessoas. A pergunta vida-viagem é qual o papel do poeta na poesia que é a sociedade, sim, a poesia é o bioextrato da vitalidade, da sexualidade, da criatividade, da afetividade, da identidade, assim mesmo com essas rimas a quem chamam pobres, mas não se esqueçam de Jersy Grotowski. Os jardins internos das "Terças Poéticas", ou melhor, do Palácio das Artes, são o jardim das delícias. Portanto, Rodrigo, mais que responder a sua pergunta, eu pratico a poesia em sua realidade mais prática. "Terças Poéticas": Jardins Internos, a minha Abissínia.

 

 

 
 
dezembro, 2007
 
 
 
 
 
 

Joaquim Palmeira. (Rio Paranaíba-MG, 1965). Poeta, dramaturgo, ator, performer, publicou 12 livros de poesia, entre eles,  Estilhaços no lago de púrpura. Organizou a antologia O achamento de Portugal (2005, Prêmio Aires da Mata Machado, versão 2005/2006, da Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais). Tem poemas publicados no Suplemento Literário de Minas Gerais, Revista Dimensão, Revista Apeadeiro (Portugal). Tem poemas traduzidos e publicados nas revistas Jalons (França) e Sìlarvs (Itália). Selecionado para o Museu da Língua Portuguesa, São Paulo/SP. Curador do projeto de poesia "Terças Poéticas" — nos jardins internos do Palácio das Artes, em Belo Horizonte/MG, onde vive.

 

Mais Joaquim Palmeira em Germina

Books Online

> Poemas

 

 
 

Rodrigo de Souza Leão (Rio de Janeiro, 1965), jornalista. É autor do livro de poemas Há Flores na Pele, entre outros. Participou da antologia Na Virada do Século — Poesia de Invenção no Brasil (Landy, 2002). Co-editor da Zunái— Revista de Poesia & Debates. Edita os blogues Lowcura e Pesa-Nervos. Mais na Germina.