II
a tevê liga o fogo e não vê serpentes nos ossos; a
alfândega trafica o fogo
e a pele faz fronteira com as cinzas; o
diplomata negocia o fogo e anexa
vísceras à adega; as armas elegem o
fogo e fazem a campanha com crânios
ocos; a bolsa e a corte negociam
o fogo e do que vive satisfaz-lhes a fumaça.
o fogo fuja aos homens para rir dos homens
III
: os olhos retornam a osso :
Apoteose, glória e exumação
dos monumentos colossais
I
Últimas notícias: o grande escritor
morreu.
Desculpem nossa falha: na verdade
ganhou o Prêmio
Nobel.
A Academia desmente. Parece que o grande escritor
dará
uma grande recepção para a imprensa.
Ou então desconfiamos que a polícia o investiga pela morte
dos pais ou dos filhos, ou
por
atentados terroristas cometidos hoje ou futuramente, tráfico de
drogas,
falsificação de moeda, pichamento de muros ou de almas,
ou não o
investiga, mas deveria fazê-lo.
As editoras deste país acabaram de lançar comunicado
conjunto esclarecendo que
nunca publicaram livros do grande escritor.
A crítica feminista descobriu que ele é uma mulher, mas não
sabe; ou que é um
homem, e merece ser tão pouco; a outra crítica
aguarda a certidão de
nascimento.
Nossos repórteres estão atentos à possível chegada do
grande escritor ao hospital;
logo saberemos se ele já digitou suas últimas palavras e as
transmitiremos
depois dos comerciais.
Não sabemos ainda qual é o nome do grande escritor, mas
prometemos perguntar se
ele aparecer.
Qual o esporte favorito, para onde vai no fim de semana, o
filme preferido, dicas de
alimentação
e beleza, a marca de desinfetante, logo vocês saberão tudo
o que pensaram em perguntar
ao grande escritor.
Estaremos entrevistando também as(os) possíveis amantes e
descobriremos quais
são as últimas notícias sobre ele.
Não desligue, logo saberemos o que aconteceu ao grande
escritor.
II
(ele está ligado a tubos de oxigênio)
(não posso ouvir)
(já não escreve mais?)
(escreve ainda. no oxigênio)
(vamos desligar para que não sofra mais)
(por que ainda escreve?)
(agora escreve o oxigênio)
(não posso ouvir)
III
os seus contos não se sustentam. não têm a firmeza das
receitas de água.
prefiro latidos.
os seus poemas não conseguem ser tão legíveis quanto as
rugas da brisa.
opto pelas quatro patas.
os seus ensaios não divertem como os sonhos do mofo diante
da migalha.
chega de chateação; vou reler o manual de adestramento de
animais domésticos.
a sua assinatura não consegue singrar o papel assim como a
seca nos rios.
é mais instrutivo o atletismo das pulgas.
agora sim! ofereceu-nos algo de interessante:
os seus
ossos, atiro-os aos cães agora
silenciosos.
IV
2.1 Os doutores não falam de nós. Logo, os doutores não são
capazes de entender
a literatura.
2.2 Ou os doutores falam mal de nós. Eles
analisam racionalmente a literatura. Mas
ela não tem relação nenhuma com a razão. Vamos explicar com
pormenores:
todos sabem que eu sou um gênio;
esse é o meu
oxigênio.
mas há dissidentes.
todos que sabem sabem que eu sou um gênio.
eu sou o
oxigênio.
mas há os que devem ser asfixiados.
sou um gênio, sabê-lo
é todo meu engenho. explico-me aos
recalcitrantes:
é só uma forma de ser, como a do vento frio após a
catástrofe.
1. Nós somos contra a crítica.
1.1 Quando falamos mal da
crítica não estamos fazendo crítica, e sim
autopreservação.
1.2 Fazemos literatura porque
comparecemos a coquetéis, conquistamos patrocínios
e inovamos na publicidade. Todas essas atividades estão
acima da crítica.
1.3 Quando tomarmos todos os coquetéis, os
patrocínios e a publicidade, somente
nós faremos crítica.
1.4 Mas seremos diferentes: o
resultado da nossa crítica não é a razão, mas a
revolução, isto é, a tomada dos coquetéis e patrocínios.
Compeliremos o público, por
meio de programas oficiais de incentivo a nós mesmos, a
cumprir sua função social:
comprar nossas obras.
Esse programa detalhado de mudança social foi descrito em
minha obra "Escravidão
mil anos depois", que demonstra que o negro fede mesmo e
precisa fazer a
revolução comunista para mudar isso.
A minha arte tem um
papel público: consegui que vários jornais fizessem propaganda
dela. Quando aquele rapaz foi dizer que minha escrita era
exemplo de alfabetismo
infuncional e minha política era conservadora e escravista,
não tive dúvida: liguei
para o patrão dele. Foi demitido, o babaca. E ainda disse
que eu não era de
esquerda!
3. Os monumentos erguidos para nós não terão cabeça. A
mente humana é
irrepresentável.
V
matei o grande escritor.
claro que foi em legítima
defesa.
ele escreveu mesmo alguma coisa?
em primeiro lugar o
amarrei. depois é que gozei.
nunca soube que ele era um escritor. e
não parecia, de mãos presas.
mas notei que só gozou depois da
morte.
não, não bebi. resolvi guardar para inseminação
artificial:
quero ter o prazer de abortar seus filhos.
VI
— Entrevista com o grande escritor.
— As notícias sobre
o meu nascimento foram um pouco exageradas. De fato, estou
pensando em apresentar meus pais um ao outro para que
possam me conceber. Se
eles não se animarem, poderei escrever um poema que lhes
insufle a paixão.
— Faremos uma entrevista. Hoje, com o grande
escritor.
— Mas, antes, seria preciso construir a casa onde nasci. O
acesso era muito difícil,
por isso minha mãe, quando conseguiu chegar à rua, teria
que andar mais um
quilômetro para chegar à linha de trem e finalmente descer
na estação do hospital.
Ela teve o azar de descer durante um tiroteio, por isso
ninguém a ajudou e ela não
conseguiu chegar; teve-me no meio do caminho, sozinha,
exceto por um cachorro
de rua que ficou lambendo a nós dois. Onde uma cidade
assim, para que se possa
construir uma casa assim e eu nascer?
— Quando chegar,
faremos uma entrevista com o grande escritor.
— Esta manhã, fiquei
pensativo com o pão. Fiquei em dúvida se as migalhas caíam
dele ou de mim. Não se assuste, eu tinha mesmo razão para
supor que talvez não
fossem de mim as migalhas que caíam. Se fossem minhas,
seria sinal de que não
estava sendo completamente consumido, seria sinal de que
alguma coisa foge do
império dos dias. Para ter certeza de que era uma parte
minha que se salvava,
peguei uma das migalhas para comer. Gostei muito. Perdi a
esperança: o gosto não
era meu.
— Tendo em vista as pesquisas simultâneas de
audiência, comunicamos a
substituição da entrevista pelo programa culinário "É hora
de moer carne".
VII
abriram o crânio para verificar onde estavam as obras.
acharam-nas, pegaram
colheres e começaram a se alimentar. alguns, de tão pobres,
usavam as mãos.
outros raspavam com paus as paredes do crânio para que
nenhuma migalha fosse
desperdiçada. enquanto se nutriam, aumentava-se-lhes a fome
até a translucidez.
alguns mergulharam no crânio para nadar. morreram
de seca nas turbulentas águas.
hortas foram cultivadas no crânio
dele. as sementes germinavam em outra espécie:
plantavam-se versos, colhia-se cacto. abria-se o cacto,
outro crânio aparecia,
dentro do qual plantava-se outro cacto e assim
infinitamente. o deserto estava por
toda parte.
assassinos, diplomatas e assessores de
deputados tentaram usar as armas
encontradas no crânio. não temiam que o mundo fosse
destruído mil vezes. foram
destruídos mil vezes, pois não as souberam usar.
crânio,
sim, um osso como outro qualquer. porém os meus cães só comem
ração.
abriram o crânio? não? acreditam que o fóssil é falso?
Abrimos o crânio para descobrir onde estão as
obras.
Descobrimos.
Jogamos fora. É hora de limpeza.
VIII
(o grande escritor está grávido?)
(a sua obra o engravidou?)
(não. só o que nunca criou poderia fazê-lo conceber)
(ele dará à luz a sua obra?)
(não. mas o nunca)
(ele não está a engordar)
(está. para dentro. no seu ventre cresce o vazio)
(leite ou sede prepara-se no seu peito?)
(sinto-me pleno como nunca antes,
o mundo prepara-se
em mim,
com absoluta certeza
sei que desaparecerei)
(o grande escritor está grávido?)
(nasceu)
(o pai ou o filho?)
(ambos. nasceram mortos)
IX
Últimas notícias: não há nenhuma em relação ao grande
escritor. Ele apenas
escreveu um livro.
(Poemas
inéditos)
Pádua Fernandes. Nascido
no Rio de Janeiro em 1971, vive em São Paulo, onde é professor universitário. Foi colaborador da
extinta revista portuguesa de cultura Ciberkiosk e integra o conselho
editorial das revistas Jandira (Juiz de Fora) e Cacto (São
Paulo). É autor de O Palco e o Mundo, poesia (Lisboa,
Edições Culturais do Subterrâneo, 2002) e é organizador e autor do posfácio da
antologia de Alberto Pimenta, A
Encomenda do Silêncio (São Paulo, Odradek Editorial, 2004).
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