Quem escreve é Sergio Milliet — um registro de seu Diário crítico a 2 de junho de 1951: "O poeta é um homem parcial, é um homem de paixão, é um narcisista. Sua concepção pessoal de poesia o induz a defini-la, de acordo com sua própria visão do mundo e das coisas, por uma dada qualidade unicamente. Para este a poesia é a metáfora, para aquele o ritmo, para um terceiro a mensagem. E se desse modo não pensasse e sentisse, o poeta talvez não pensasse ser poeta. Que continue, portanto, a escrever e publicar aquilo que se lhe afigura certo e justo, mas que não se lance ao julgamento de seus confrades, que não pontifique, que não teorize. Que não se meta a crítico, porque as qualidades do crítico são exatamente as que lhe faltam. Em particular, a simpatia. A crítica dos poetas é como a crítica dos pintores: subjetiva e imperialista."
Após meio século, agora em junho de 2006, podemos sem medo endossar novamente estas observações tão atuais, agudas e certeiras. Não por acaso, ele foi um dos nossos mais lúcidos e influentes críticos. Um escritor que conseguiu conciliar sem conflitos o poeta, o ficcionista, o sociólogo e o crítico, facetas catalisadas em função da atividade crítica (literária e de artes plásticas), à qual ele se entregou com fervor e dedicação incomuns e soube como poucos transformar em conhecimento humanístico.
Falar da elegância de estilo e pensamento em Sergio Milliet é repetir o já sabido. Modelo de pensador brasileiro e sobretudo de humanista, ele encarnou o escritor participante e homem público de raro estofo moral, figura de intelectual hoje quase extinta. Infelizmente, é um desconhecido das novas gerações, que ainda não tiveram a oportunidade de ler seus livros, cujas últimas reedições (poucas) datam de duas décadas e meia. Sua importância para a literatura brasileira do século 20, este século ainda tão mal estudado, é enorme e em geral negligenciada em favor de nulidades rutilantes que se fabricam cotidianamente e terminam onde começam, sem futuro.
Os dez volumes de seu diário crítico, junto aos três livros similares que publicou posteriormente, bem como a maioria de seus livros anteriores sobre pintura, literatura e outros aspectos da vida brasileira, tornaram-se aos poucos objetos de bibliofilia quando na verdade deveriam ser retomados, reeditados e distribuídos às bibliotecas públicas deste país sem memória. Pobre país infestado de ratos. No entanto, o desprezo que os atuais poderes instituídos têm por livros e artistas não queimará todas as sementes. O centenário de nascimento de Milliet, comemorado em 1998 com encontros e debates, é exemplar nesse sentido e rendeu, apesar de alguns senões biobibliográficos, um bom livro — Sergio Milliet 100 anos: trajetória, crítica de arte e ação cultural (Associação Brasileira de Críticos de Arte/Imprensa Oficial de São Paulo, 2005). A organização ficou por conta de uma especialista, Lisbeth Rebollo Gonçalves, autora de Sergio Milliet: crítico de arte (Perspectiva/Edusp, 1992). Ambas são publicações indispensáveis.
Contudo, o livro que efetivamente deve chamar a atenção para a obra de Sergio Milliet, dirigido para um público maior e diversificado, é este que a Global acaba de lançar na coleção Melhores crônicas, dirigida pela escritora Edla van Steen, que antes idealizou as coleções "melhores contos" e "melhores poemas", sucessos de público e crítica. Organizado igualmente por especialista na obra do autor, a professora Regina Salgado Campos, o volume de crônicas de Milliet privilegia assuntos que estavam à época (e de algum modo permanecem) na ordem do dia: as estréias literárias de Álvaro Lins, Clarice Lispector, João Cabral de Melo Neto e Nelson Rodrigues, a Semana de 22, certos pontos de vista de Mário de Andrade etc. Ao sabor dos dias que, para Milliet, "são iguais como nós mesmos", as crônicas se sucedem — ora o assunto é a guerra com as suas incongruências, ora são os artistas do Museu do Inconsciente. Aqui, uma retrospectiva de Tarsila do Amaral; mais adiante, os perfis de dois seres humanos inquietos, Di Cavalcanti e Flávio de Carvalho. E, do início ao fim do livro, reflexões sobre crítica literária, crítica de arte, sobre moral e ética. Para nada falar das impressões de viagem ou de leituras, variadas, abundantes.
Talvez por limitação de espaço, a organizadora tenha priorizado assuntos por demais aceitos e hoje estratificados, tendo passado ao largo das muitas anotações sobre autores ou artistas que a atualidade inconscientemente (ou convenientemente) esqueceu. Seria uma abertura necessária para um livro desta envergadura. Todavia, esse aspecto de modo algum invalida a pesquisa — e a observação da autora, ao fim do prefácio, é lição que se deve guardar: "Opondo-se ao brilhantismo professoral e à retórica vazia dos donos da verdade, dos dogmáticos, [Milliet] manifesta sua simpatia pelos mais jovens e busca estimular a curiosidade de seus leitores. Esperamos que essas qualidades continuem a exercer sua influência sobre os leitores atuais." É mesmo o que se espera de um lançamento como este — que germine, floresça e que também dê frutos. Porque precisamos como nunca voltar aos nossos autores fundamentais.
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Sergio Milliet. Coleção Melhores Crônicas. Seleção e prefácio de Regina Salgado Campos.
São Paulo: Editora Global, 2006.
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agosto, 2006
André Seffrin é crítico literário e ensaísta. Atuou em jornais e revistas (O Globo, Jornal do Brasil, Última Hora, Jornal da Tarde, Gazeta Mercantil, Manchete, EntreLivros etc.), escreveu prefácios e ensaios para edições de autores nacionais e organizou, entre outros livros, o Dicionário de pintores brasileiros de Walmir Ayala (Curitiba: Editora da UFPR, 1997), a Antologia poética de Foed Castro Chamma (Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2001), as novelas O desconhecido e Mãos vazias e O enfeitiçado, Inácio e Baltazar de Lúcio Cardoso (São Paulo: Civilização Brasileira, 2000/2002), os Contos e novelas reunidos de Samuel Rawet (São Paulo: Civilização Brasileira, 2004) e Melhores poemas de Alberto da Costa e Silva (São Paulo: Global, no prelo). Também escreveu ensaios biográficos para edições de arte: "Roberto Burle Marx" (1995), "Joaquim Tenreiro: artista e artesão" (1998) e "Sergio Rodrigues se recorda" (2000).
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