O BOI CEGO

 

— a nuvem escura — um boi

se erguendo

 

— mas o boi se deita —

se alonga —

sobre o Continente

 

— a língua do boi — chamariz do sol se pondo

 

— ele abaixa a cabeça —

sua espádua — tem brilhos

 

— o boi abre um olho —

o sol — atrás da pálpebra

caída, flácida

 

— pêlos do boi no miolo

do sol —

como cílios soltos

 

 

 

 

 

 

LA MARÍTIMA BARBA DE CAMOENS

 

 [Miniatura: num armário]

: o vento trança ruídos

rede contínua tenda enorme

depois folhas adormecidas

recostadas moles secas duras

um pé não bóia não se balança mas se desloca enfermo

e mais ninguém

: o mar escorre a madeira chocolate seca

cadeiras da mesma cor secam

e guarda-sóis brancos com garras negras abertas por dentro

: o deck linhas retas que os vasos 

fixam no chão

ao som de um foguetório seco

: no gramado a folhagem mexe

os guarda-sóis idem

: atrás dos ferros fôrmas de papel na areia

: descolorido o sol se põe inteiro

num saco de plástico embolorado

os garis continuam de bruços

junto às pedras secas

: o ar aba de um chapéu voa sobre as ondas

 

*

[Miniatura: fora do armário]

: guarda-sóis fechados à sombra do salão

tampo manchado sabão líquido

claras de ovo deslizam

se achegam ao deck sob um pássaro que aberto

e quase imóvel tapa grande buraco na própria trajetória

no meio-dia espumoso

: salta a água e se vai com mais

direção do que os insetos

que lhe cruzam a trajetória

levemente descabelada

: inscrições a esmo

no portão solto que se abre e se fecha ããããã

: em cada guarda-sol fechado dobras

como asas frouxas ave de pano

que se esvai aos poucos

— ...

 

*

[Miniatura: se espatifa no chão]

: uma criança excepcional loura

quieta imóvel na água no colo da mãe

olham ambas uma escavação acima

das ondas no céu

 

*

[Miniatura: seus cacos se espalham]

: aguaceiro o tampo da mesa é um espelho

: o mar nada possui de reluzente é

antes guarda-sol fechado maciço deitado

na areia cutuca-o o vento chuta

: os guarda-sóis fechados em pé

nas mesas movem seus gomos longos

como penas compridas de ave molhada

sacudida contemplativa

: emaranhado pés de cadeira sua sombra no deck

molhado informe

: o mar fechado e deitado de lado

como guarda-sol na chuva fina

 

*

[Miniatura: a vassoura a recolhe veloz]

: a casca escura de uma palmeira

no chão fuselagem de um foguete

estropiado ou esvaziado

carcaça de um animal com patas

rígidas para trás o pescoço a cabeça arrancados

do corpo intumescido e oco sem cheiro

: passarela de madeira lambida

por línguas longas entre as manchas úmidas

a mesa oculta atrás de um vaso paralisado

de um lado o verde cedeu a um vago

marrom ressequido

: ...

: o sol avança no deck e tudo se inclina

 numa curva aérea

: do outro lado das pedras 

sob o sol cabeças atrás

da fresca mala aberta mergulham retornam

ombros úmidos brilhantes

 

*

 [Miniatura: uma poeira áspera]

: dois corpos passam pesados a pé    

: a lancha circunda o transatlântico

e se afasta como letra branca

do seu casco negro levada pelo vento

: fiapos de grama verde no deck

oscilam entre os vãos diminutos

a sombra de uma cadeira se joga para trás

como uma toalha esgarçada

esquecida no chão

: uma vela amolecida perto

de repente derrete a paisagem

antes firme cascos brilham na água

: a mesa redonda é como um olho

fechado impedido de se exaltar

: um corte de sombra separa

o tampo da mesa em dois

pálpebra clara descida

e olheiras escuras sem queimadura 

numa pele enrugada com perfurações

paralelas negríssimas indígenas

 

*

[Miniatura: ... ... ... ... ... ...]

: dois olhos bem redondos

de madeira circundados de cílios

de madeira empenados e duros

curvos para cima

: pupila vaga buraco áspero

de dois dedos de profundidade

dali espaço vago de onde pende elétrico

algo trincado uma lasca de madeira

folha diminuta no vento escondido

sob o tampo seco espanado

: dois olhos de madeira

: cílios que não se debatem

rígidos lançam sombras no deck

: socos bolas como olhos

do outro lado da parede de pedra

parede trincada como um vaso rachado

em toda a extensão do seu bocal

 

*

[Miniatura: ... ... ... ... ...]

: duas cadeiras se afastam três outras se aproximam

no centro a mesa vazia como gota plana

no fundo de uma ânfora ou de um vaso de madeira

que se vira para o mar

: bacia dura cinco espaldares em volta

o tampo um fundo reto e seco

sob as nuvens amassadas o vazio é o cerne

: o vento apara a grama sobre a água

que se arrasta na areia mole como um fio

: tampos anêmicos artigos de barro seco

na boca do forno o sol tateia o jardim reaviva-se

 

*

[Miniatura: ... ... ... ...]

: bancos vermelhos se balançam pendentes

de toras grossas pernas de insetos

se escorrem como asas caídas

de cigarras dentes de peixe

: sob os bancos passa o stand de frutas

reflexo no vidro entre o parque de plástico

e os estofados de pano guardados na sombra

: entre estofados antigos e plásticos coloridos

a madeira empalidece o tampo

da mesa ameaça a cadeira que aguarda no sol

as grades de uma prisão o espaldar na sombra

enfrenta a zona de luz a mesa reluta

: as cadeiras de madeira imóveis sem cadeias

: talvez menos ardentes do que as de plástico presas

a fios rubros como em brasa

 

*

[Miniatura: ... ... ...]

: ...

: se guardam na sombra atrás dos vidros

os estofados antigos um reflexo na parede translúcida

faixa de areia clara entre lagos de ondas

engomadas ondas iguais imóveis

misturadas às persianas o vendedor de redes

se afasta uma imagem a mercadoria nos ombros

as pernas finas um avestruz 

: ...

 

*

[Miniatura: ... ...]

: um passo apenas da chuva

da manhã quase seco na madeira

 

*

[Miniatura: ...]

: a maçaneta do portão a solidez enorme

da alça de um caixão talvez guardado no seu panteão

: as mesas são flores murchas amareladas

com cadeiras esfiapadas como galhos

onde nada assenta mais

: persianas brancas descidas diante

de estofados manchados reflexos de árvores

como nuvens negras residências avançam

no vidro como transatlânticos etéreos

: sobre o deck as palmas rejeitadas

pelo vento

: atrás do muro de pedra um naufrágio

camisetas à venda num cabide cheio vêm à tona

 

*

[Miniatura: ]

: a criança deitada

no estofado antigo descalça

ressona e o seu bico navega

bóia

 

 

 

 

 

 

MACA

 

  1. 1. 18. estará concluída; logo; não bateram ainda as estacas; não todas; um terraço         vazio põe panos quentes; na paisagem; — circulam (num plano inferior) órgãos;             pesados...
  2. 2. 17. desde sempre inchado — conforme o acompanhante suba; um lanço do edifício         por construir —, o morro eriçado de antenas; -- e não se retiram; de lá;  seringas         que injetam; imagens...
  3. 3. 16. um galho seco (marca da última poda); contorcido como; fumaça — um vício         inveterado da árvore; que se chega à clínica; em obras...
  4. 4. 15. pássaros se mexem nos galhos como; quistos num órgão cheio; — árvores às         vezes infectadas, outras não...
  5. 5. 14. no quintal ao lado, o varal; um antigo poste; (junto das folhas do mamoeiro); com     fios (de cores variegadas); a locomotiva, sem trilhos, solta-se, mais embaixo: é             possante motor nu; sem os enfeites dos veículos, enterrando-se; com as peças todas     no chão...
  6. 6. 13. ao redor, telhados saem para fora; como súbitos cotovelos dobrados; telhados         vão para dentro; chupados; — uns canos soltos; já sem préstimo...
  7. 7. 12. pássaros (— costuram a árvore —); (re)pousam em galhos ínfimos (maiores             apenas que agulhas de crochê); outros galhos pendem; como fios eriçados sobre a         máquina imensa; qual besouro no ninho...
  8. 8. 11. nuvens que mudam de cor; passam + além (deste lado do  mundo); sobre o traço     calmo do morro, inchaço; gracioso; -- algodão; espreme miragens...
  9. 9. 10. equilíbrio; o pássaro pula; sobre o barulho — e cai; para mudar de galho, o peito     amarelo forte; a terra, remexida; pelo tronco elétrico; as raízes ligadas a tomadas —     outros aparelhos ao redor chacoalham também; como galhos quebrados, circuitos         desligados; e religados; podam-se ruídos; que rebrotam...
  10. 10. 9. há sempre um casco azul claro; (lá); — o olho; não roça o morro; como cara         ferida; preservada; intacta; na pele anuviada...
  11. 11. 8. no teto do quarto a lâmpada (a tampa fechada; ela solta um vapor luminoso) se     suja; como panela de sopa; — ou, então, como abscesso; numa gengiva: — lança         três garras escuras; ao redor da cor anêmica —; ah, a sacada alta; de repente se         apequena, dente (saliente); de sorriso possível...
  12. 12. 7. uma árvore recolhe: pássaros; sobretudo; eles caem; em linhas retas; como num     circo; — mas as folhas: redes furadas: só retêm; o sol; algumas asas, externadas; de     borboletas desidratadas; depois vibram de novo; piando (em galhos recolhidos; seus     abrigos)...
  13. 13. 6. alto-falantes; em corredores mal desenhados; calam; a clínica; — num celular;         uma mensagem gravada, a mesma: "Aaaaaaaaa...
  14. 14. 5. ...aAAAAAA!
  15. 15. 4. Aaaaaaaaa...
  16. 16. 3. ...aaA!!", a voz, a dela;
  17. 17. 2. incansavelmente;
  18. 18. 1. EI-LA aqui; agora; só que; do outro lado...

 

 

 

 

 

 

 LIPOASPIRAÇÃO DE FACHADA

 

    Mulher magra, carregada de bolsas, pastas, segura um cilindro vestido num pano azul, bem alto, fino —

 

    As folhas cor de brasa

    Estão aconchegadas na folhagem verde,

    Como numa almofada:

    — grande chaga

    Avivada pela brisa

 

    Outra, mais velha, arcaica, passa como um manequim de rodinhas indo para fora. Outra.

 

    No jardim deserto

    As cadeiras se enferrujam

    — finas almofadas novas

 

    A porta, fechada, de vidro, pacífica, sob um toldo branco com nome feminino pintado (as letras invertidas).

    Uma das folhas da porta agora aberta; fora, uma sombra larga deitada (membros ralos, aqui, ali) no calçamento deformado.

    Do outro lado, salões vazios, sem cortinas; atrás dos salões, galhos subindo do térreo até o primeiro andar, diante de bananeiras moles, folhas retalhadas, inquietando-se.

 

    Folha seca de lado,

    Como pálpebra descida,

    Rosto parado

    [Som de pá na massa pesada.]

 

    O pára-quedas da luz desinfla

    No jardim:

    Cor rasteira, deitada

    No lusco-fusco

    [Uma sombra vacila como água se espalhando no piso brilhante; depois, um corpo, um gesto: para dentro do quarto/do armário — oculto, ou vindo à tona, rapidamente.]

 

    Como bolhas de saliva,

    O pátio regurgita pedras,

    Amontoadas levemente

    [Vassouras percorrem vãos, sucessão de espirros breves — empurram a grama cortada para o sopé da colina.]

 

    Abre-se

    E se 

    [No couro enrugado, uma alça descansada.]

 

    Volta:

    Unha,

    Pára-brisa seco

    [Um galão de água vazio atrás, a moto desce a ladeira em silêncio.]

 

   

    […]

 

   

    […]

 

   

    […]

 

 

 

 

 

 

PARES (EMBARALHADOS) DE PROPOSIÇÕES ABSTRATAS E CONCRETAS

 

1.1. As bolhas sempre mergulham de novo — cabeças que o fogo apagado estoura.

       Fio contínuo — a gota de chuva numa das mamas do toldo.

 

1.2. A areia arria a água de si: expõe uma umidade.

       Pássaros vestidos em meias escuras pulam no muro de pedra: desequilibrados.

 

1.3. Je suis allé me promener.

       Je me sens mieux.

 

1.4. A névoa caminha lerda nos galhos pontiagudos.

       A longa folha amarela, esfiapada, que se faz serrote, corta os laços com o verde local.

 

1.5. Como papéis amassados: as pedras perto da ilha redesenhada toda manhã.

       Apoiada nos telhados a fraca luminosidade se solta nas paredes dos edifícios.

 

1.6. O vento na folhagem revira gavetas cheias.

       Os galhos se mexem como vermes e bebericam a luz crua.

 

1.7. No m are x;

       All y are m’.

 

1.8. A folha enferrujada gira como uma colher de cabo longo.

       A brisa é doce.

 

1.9. Object is fact not symbol (no ideas).

       Mind can change.

 

 

 

 

 

 

NOVOS PARES DE PROPOSIÇÕES

 

2.1. Um bando de folhas secas entra correndo no pátio.

       O fôlego do vento.

 

2.2. Areia fina em sacos quase cheios — suas bordas amassadas se alvoroçam como ondas.

       Grandes sacos alvos quase plenos de entulho carregados como pedras leves.

 

2.3. Como un flechazo contra una bandera atravesó un pájaro el follage.

       Los insectos sentados en sus flores.

 

2.4. Um jogo. 

       O jardineiro leva a folha debaixo do braço como uma bandeira enrolada.

 

2.5. Curvos como cílios, descem urubus na areia.

       De perfil a teia é como a lente de um óculo — a pupila do lado de fora, aranha que mais se vê.

 

2.6. Aucun quadrupède ne sait siffler.

     Quelques chats  sont des quadrupèdes.

 

2.7. No children are patient.

       No impatient person can sit still.

 

2.8. Dois pássaros na água rasa fogem.

       A espuma finge apenas se fincar na terra como garras brancas.

 

2.9. Um ovo passeia em pé numa água que começa a borbulhar.

       Um balão num vendaval de folhas translúcidas.

 

 

 

 

 

 

SOLUÇÕES INADMISSÍVEIS

 

A onda se retira das pernas dos meninos como calça frouxa.

 

O dorso negro da motocicleta ao sol, foca brilhante com dois chifres prateados e fiapos de bigodes caramelados.

 

 

 

 
 
 
 
 
 
 

O LANÇADOR DE OLHOS

 

 

Uma festa, um rito, performance, teatro e cinema

 

 

 

                                             — u-i-énu kané z-ali-ma’ né!*

                                                De uma lenda amazônica

 

 

 

* -- Agora vou mandar os meus olhos embora de novo!

 

 

 

 

PRIMEIRA PARTE

 

 

* T-E-A-T-R-O

 

O público se senta num barco branco, ancorado numa ilha não distante do Continente. (A água ao redor do barco se coalhará de olhos de papel e isopor dois minutos após o início do espetáculo.) São 10 da manhã.

 

Um ator, sentado no meio do barco, se levanta de repente e, apontando para o Continente, do qual se vê sobretudo um monte, diz: 

 

— (Algo ininteligível).

 

Voltando-se para a praia da ilha, o ator exclama, solene:

 

— (Algo ininteligível).

 

Homens, mulheres e crianças, sentados no barco, poderão usar câmeras para filmar a paisagem. Mas não poderão usar óculos escuros durante o espetáculo.

 

No meio dos olhos que bóiam na água, enormes cobras de isopor, escuras ou louras, passam como sobrancelhas.

 

Na areia fofa da praia, forminhas de papel de todas as cores. Pisoteadas, manchadas, vazias. Algumas forminhas, contudo, correm como caranguejos, levadas pela brisa intermitente.

 

O ator se apropria de uma câmera e começa a filmar a paisagem, ao mesmo tempo em que ordena bem alto:

 

— Vão!

 

— Vão, não vão? — indaga uma voz desconhecida. Talvez provenha de algum poste na praia.

 

 

* P-E-R-F-O-R-M-A-N-C-E

 

De repente, crianças surgem na praia e entram no mar. Catam olhos, enchem os braços de papel e isopor pingando. Felizes, molhadas, pisam a areia e correm para o muro de pedra defronte. Passam por um portão pequeno, que deixam aberto. 

 

 

* C-I-N-E-M-A

 

O rastro de um jato alto marca, no céu limpo, longa sobrancelha encanecida que o vento logo deforma e espalha como corda retorcida.

 

Um píer aproxima-se flutuando do barco, mas pára antes de colidir com ele, encaixando na areia uma das extremidades. Ficará fixo ali.

 

O píer está repleto de alto-falantes que emitem sons irritantes, vozes baixas, melodias enjoativas, rangidos altíssimos, gritos de aves.

 

Como fantasmas, blusas frescas circulam pela praia — são módicos os preços afixados nelas.

 

Atrás do muro de pedra um enorme guarda-sol se fecha quando bate um súbito vento; é terrificante estátua vestida com roupão plissado e chapéu de abas caídas.

 

 

* T-E-A-T-R-O

 

— Voltem! — grita o ator, ao deixar de filmar a paisagem.

 

— Voltem! — repete o alto-falante mais elevado; os demais aparelhos, que estão também no píer, murmuram algo, aprovando aparentemente essa enérgica intervenção.

 

— Não, na terra não! — diz inesperadamente o mais baixo dos alto-falantes, como se recriminasse alguma criança que, agachada na praia, estivesse na iminência de tocar a areia, entre forminhas sujas, cheias de farelos de doce.

 

— Vão! — ordena o ator, fingindo (ou não) chutar algo do barco para a água.

 

O sol arde mais forte, beira ou anuncia o abrasivo.

 

— Vão! — insiste o ator, agora se dirigindo ao público que o acompanha no passeio de barco.

 

 

* P-E-R-F-O-R-M-A-N-C-E

 

O  público pula rápido para a água (é rasa) e, caminhando calmamente, chega à praia.

 

Uma escuna ruidosa passa ao largo, trêmula e arcaica.

 

Os primeiros a pisar a areia são recebidos por adultos e adolescentes (sujos, mas uniformizados) que os convidam a entrar em grossos sacos. Aqueles que aceitam tão inusitado convite são carregados então (por duas pessoas) para o quintal defronte, o mesmo cujo portão as crianças carregadas de olhos, mencionadas atrás, deixaram aberto.

 

O mar fica liso, com manchas esverdeadas, mas estas já começam a se dissolver numa água arrepiada, cor de cimento, que dominará a seguir a enseada.

 

— Olhar calado! — grita o ator, surgindo na praia entre dois ou três espectadores que não puderam ou quiseram ser ensacados, em razão de sua timidez, elevada estatura ou idade avançada.

 

 

* C-I-N-E-M-A

 

Quando todos fecham os olhos, o ator gira o corpo, gesticulando muito. Ele pede desesperadamente que o cenário seja modificado, então o sol some, depois ressurge entre nuvens. O barco afunda. O verde foge para longe, contornando os montes continentais. Montes mais suaves surgem ao fundo. Uma faixa verde retorna e se instala no exato centro da enseada.

 

O portão do quintal defronte se fecha com um baque. O sol se esconde novamente. Retalhos de verde se espalham sobre o vasto cimento quase por inteiro coagulado. O sol retorna, uma brisa fria mexe as palmeiras como se as chacoalhasse de propósito. O cimento da água se deforma aos poucos, tornando-se verde, mas só do meio da baía para trás, em direção ao Continente eriçado.

 

O calor aperta, um vapor desce como uma lâmpada acesa no meio do céu.

 

Bois puxam o píer para um lugar bastante afastado, na mesma praia.

 

Lanchas, escunas ancoradas.

 

— Olhar fechado! — insiste o ator. E acrescenta, ameaçador: — Sem estouro, com estouro!

 

O verde se intensifica quando babas claras se estiram, fervilhando, em vários pontos da baía.

 

Tratores e veículos altos substituem os bois na tarefa de arrastar para longe o píer. Os bois ficam soltos na praia. Meia dúzia de garças, depois de estraçalhar olhos na água rasa, alçam vôo e pousam diante dos ruminantes. Cada ruminante de pêlo negro, ao descer a testa, roçará o focinho reluzente no  pescoço de uma ave.

 

Tudo o que na praia é branco vai se tornando ainda mais branco.

 

Uma escuna colorida (parece coberta de panos ou vestida de roupas), zumbindo, recolhe o barco afundado e o leva puxado para o mar grosso, com uma lentidão infernal. Infernal para quem, como o público, permanece em pé e de olhos fechados na praia.

 

 

 

SEGUNDA PARTE

 

 

* F-E-S-T-A

 

Um imenso salão em reforma. Janelões fechados com tábuas toscamente presas às paredes. Vê-se a folhagem do quintal através de vãos generosos.

 

O público, trazido para ali em sacos sujos, finalmente é libertado. Usam, moços e velhos, à guisa de almofada para sentar-se no chão, os sacos cuidadosamente dobrados. Diante de si têm apenas uma parede manchada. Penumbra fresca, embora empoeirada.

 

Tábuas espalhadas no piso cimentado são rapidamente retiradas do salão por um homem humilde, magro, muito ágil.

 

 

 

TERCEIRA PARTE

 

 

* T-E-A-T-R-O

 

— Vespas! — grita o ator.

 

O público, agora muito pequeno, abre os olhos e momentaneamente fica cego. A claridade é intensa. Esfregam os olhos com as mãos.

 

— Pálpebra inchada! — alerta o ator, usando sua câmera para filmar o público atônito ou assustado com essa informação.

 

Atemorizados, todos se lançam na água e caminham aos gritos até um barco cinza que se aproxima vagarosamente da praia (barco menor do que aquele em que se sentaram no início do espetáculo). Um pescador, em pé na água e com uma mão apoiada no barco, consulta absorto seu telefone celular.

 

 

* P-E-R-F-O-R-M-A-N-C-E

 

O público se acomoda no barco, visivelmente aliviado, talvez feliz. O ator é o último passageiro a embarcar. Não vêem, porém, vespas no ar, só uns passarinhos diminutos que se escondem no próprio vôo veloz.

 

O mar parece vazio. Subitamente frio, o vento encrespa a água como se um helicóptero sobrevoasse em vôo rasante a praia.

 

 

* T-E-A-T-R-O

 

— Olhem! — brada o ator, mostrando com o indicador algo invisível no ar ou no muro defronte. — Veio daquela construção!

 

Levando e trazendo o braço erguido, o ator indica com a câmera a casa que agora abriga, supõe-se, parcela expressiva do público — ao desembarcar na ilha, este para lá foi transportado em sacos grossos.

 

— Agora mais dois! — insiste o ator, indicando o muro de pedra. — Voltam!

 

 

* P-E-R-F-O-R-M-A-N-C-E

 

No barco, o público silencia.

 

Três pescadores, numa canoa, aguardam no meio da enseada. Aproximam às vezes suas cabeças em câmara lenta, como autômatos atuando no mesmo ritmo.

 

 

* T-E-A-T-R-O

 

O mar se acalma. Olhos antigos, dispersos, bóiam na água nas imediações do barco.

 

O público nota que o barco, agora rodeado de pescadores, se deslocou vários metros. Na praia defronte, avistam uma casa muito diferente daquela que supunham existir nesse local.

 

Atrás do muro de pedra, eles vêem diversos edifícios, com diferentes telhados. Pássaros, como panos esticados, pairam esturricados sobre essa propriedade.

 

 

*C-I-N-E-M-A

 

Um pássaro lerdo sobrevoa os telhados, galho fino rodeado de grossa casca que se soltou como um colarinho aberto — asas flácidas.

 

Duas longas tábuas esbranquiçadas no mar, no meio da enseada. Tranqüilidade. As tábuas se unem, ganham nitidez e extensão. Ameaçam tomar a baía.

 

 

*T-E-A-T-R-O

 

— Cacos! — grita o ator, apontando para o céu. — Protejam-se!

 

Incrédulo, o público fica paralisado.

 

— Pesadas como abacates — pondera o ator, agora examinando a água. — Essas íris!

 

— Sobre mim? — ameaça uma mulher (na verdade uma atriz), em pé no meio do barco. E antes que os presentes possam esboçar uma resposta, ela se lança na água. — Não! 

 

Dando de ombros, a atriz começa a caminhar arfando para a praia (a água é rasa), mas desaparece inexplicavelmente. Sugada talvez para debaixo da terra por uma corrente fortíssima. 

 

 

* C-I-N-E-M-A

 

As tábuas no mar se tornam lixas gastas, alvas. Uma escuna passa lentamente, num movimento enviesado. É albina, com duas antenas descomunais.

 

Um caranguejo se move na praia ao longo de um remo deixado na areia — aparentemente traz o remo sob o braço.

 

O mar, sem perder a palidez fria, torna-se verde pastoso, mas predomina na enseada o cinza.

 

 

* P-E-R-F-O-R-M-A-N-C-E

 

O público, passada sua perplexidade inicial, lança-se cautelosamente na água e, inseguro quanto a que rumo tomar, se mistura aos pescadores que rodeiam a embarcação. Trocam impressões entre si sobre os mais variados temas.

 

 

* C-I-N-E-M-A

 

Por toda a parte a água libera pedaços de pele, como se ela se arranhasse sôfrega.

 

A enseada fica castanha, como num final de tarde (nuvens baixas e clarões luminosos sobre o Continente, sempre ao fundo). Cerca de meio-dia.

 

 

 

QUARTA PARTE

 

 

* R-I-T-O

 

Recolhida ao salão em reforma, conforme sabemos, parte substancial do público ainda permanece sentada no chão cimentado, sobre sacos dobrados.

 

Os que antes olhavam para a parede vazia, como se estivessem diante de um telão, viraram-se agora para o lado oposto, onde há um tapume ocultando uma escada. Olham para o teto, coberto por longuíssimas mangueiras cinzas ou amarelas, que lembram pernas de aranha ou veias num órgão esfolado severamente. Alguns percebem a perna imensa de uma giganta, com varizes e hematomas.

 

Seus olhos, bem abertos, viajam por essas mangueiras que transportam emaranhados fios elétricos; suas cabeças inquietas se movem de um lado para o outro.

 

Por trás das tábuas presas às paredes, a folhagem está imóvel. Ouve-se apenas o mar, contudo o rumor vem do quintal, onde árvores, espreguiçadeiras, balanços, mesas, estariam, a julgar pelo som próximo, sendo embrulhados em plásticos.

 

 

 

QUINTA PARTE

 

 

* C-I-N-E-M-A

 

Neste momento o Continente ostenta a vasta aba de um chapéu claríssimo que deixa na sombra sua testa (o rosto de pedra parece oculto sob a água).

 

 

* P-E-R-F-O-R-M-A-N-C-E

 

—O que querem? —um pescador pergunta ao ator, enquanto ambos caminham lado a lado na água rasa, seguidos pelo público.

 

 

* T-E-A-T-R-O

 

— Procuro um chocalho — exclama o ator no exato instante em que pisa a areia branca.

 

O pescador nada responde, mas o ator logo explica:

 

— Para mim, olhos são chocalhos. Tocam música, enquanto se movem sem parar.

 

 

* C-I-N-E-M-A

 

O dia estoura.

 

 

* T-E-A-T-R-O

 

— Para este lado eles voltam olhos que vão pelos ares — ousa opinar um espectador ancião bastante rubro, caindo sentado na areia com um suspiro de alívio. — Olham para nós, que ficamos para trás. Ou que fomos para a frente, tanto faz.

 

— Mande-os de volta! — aconselha uma mulher enérgica, como se se tratasse de tarefa fácil. — Olhos!

 

— Usam um lançador — explica o ator, mostrando com a câmera a casa onde, segundo se murmura, parte do público está agora enleada em mangueiras e fios, tentando examinar a vasta paisagem sem ferir a vista.

 

— Os daquela casa — pondera alguém.

 

Um pescador esquelético chega à praia com os braços cheios de olhos, olhos que ele esfrega sofregamente nas duas cavidades vazias do seu rosto. O isopor se esfarela. Anos atrás, a luz do sol o cegou. Depois seus olhos sem brilho caíram na água como peças soltas.

 

 

* P-E-R-F-O-R-M-A-N-C-E

 

Uma senhora choraminga porque lhe aperta a fome. É obesa. Alguém lhe entrega um saco grosso, mas ela sabe que, se entrar nele, ninguém a carregará para uma casa fresca. A senhora se limita a enfiar as pernas no saco, para esconder as varizes, e permanece de pé na areia.

 

 

* C-I-N-E-M-A

 

Uma linha de pássaros negros sobrevoa a água como fiapos de uma costura arrebentada num órgão que se mexe levemente e muda drasticamente de cor: o verde vivo se espalha e escorre como um óleo em direção ao Continente, avançando sobre o verde fosco reinante.

 

 

 

SEXTA PARTE

 

 

* P-E-R-F-O-R-M-A-N-C-E

 

Um telão é instalado na parede manchada do salão em reforma. Vê-se nele o mar.

 

A enseada está sendo filmada nesse exato momento, mas a praia não é mostrada, vê-se apenas a água e seu cimento. O Continente, contudo, ao fundo, é imponente sobrancelha eriçada. A água de repente brilha.

 

O salão silencia.

 

 

 

SÉTIMA PARTE

 

 

* T-E-A-T-R-O

 

Um helicóptero, voando baixo, passa sobre a praia como um olho sem rosto. É apenas um globo com longa ponta atrás, que se afina, bem estirada.

 

Não se sabe ao certo o que os ocupantes do helicóptero, cujo som de imenso chocalho é audível sobre as palmeiras, vêem na praia, nessa tarde. Não se sabe o que os seus ocupantes buscam nessas paisagens. (Buscam na verdade outra paisagem, além.)

 

 

 

F  I  M

 

 

(Do Livro Multiplicação de Heráclito)

 

 

 

(imagens ©tommek)

 

 

 

 

Sérgio Medeiros: Neste início de século, publiquei dois livros de textos poéticos: Alongamento (Ateliê, 2004)  e Mais ou menos do que dois (Iluminuras, 2001). Sou um autor do século XXI, portanto, já que no século passado só publiquei ensaios e traduções, não textos poéticos próprios. Escrevo todos os dias — faço pequenas anotações a mão, que chamo de descritos. Esses descritos são sucintos e precisos, não perdem tempo com o pronome "eu" — o sujeito é omitido, ficam seus olhos vazios olhando para a paisagem e as coisas. Meu passatempo (ou exercício espiritual) favorito é sentar-me numa das praias da minha ilha (moro numa praia, Cachoeira do Bom Jesus, em Florianópolis), tendo diante de mim o Continente. O Continente ora está perto, ora longe, ora inteiro, ora pela metade. Às vezes some. O olhar vazio que olha o Continente não tem nostalgia nem ódio, apenas olha e celebra o aparecer e o desaparecer de um mundo do qual ele, enquanto olhos sem "eu", não faz parte.  Quando junto esses descritos, crio os meus livros. Livros inéditos tenho dois: Multiplicação/Heráclito e Meteoros mecânicos. E já estou escrevendo outros. No meu processo de compor, considero crucial a presença de uma terceira mão, uma mão estranha que de repente se intromete nos meus textos e os des-arranja. (É um procedimento muito banal na música contemporânea — cf. Cage, por exemplo.) Essa mão não é uma metáfora, mas a mão de Dirce Waltrick do Amarante, a minha musa. Uma das minhas fantasias mais produtivas é imaginar-me autor de uma obra póstuma que outros manipulam. Com o meu consentimento. Aprendi isso com os mestres do passado, como Emily Dickinson e Machado de Assis, e com os pré-socráticos. Mas também com os nossos índios. Sou professor universitário, leciono literatura na UFSC e pesquiso mitologia ameríndia. Os mitos são textos imprecisos que vão ganhando diferentes configurações conforme vão sendo recontados por diferentes narradores. Cada um acrescenta algo, distorce, fragmenta, alonga etc. Não se pode saber nunca qual é a melhor forma de um mito. Um mito é todas as suas versões. Nasci em Bela Vista, Mato Grosso do Sul, uma cidade situada na fronteira com o Paraguai. Minha família, tanto a materna como a paterna, é constituída de gente originária do Rio Grande do Sul. Por isso talvez me sinta tão bem no Sul no Brasil, lugar que escolhi para viver. Estudei na USP, Sorbonne e Stanford University. Passei algumas temporadas em Assunção, Paraguai, estudando o guarani moderno. Traduzi para o português, com revisão técnica de Gordon Brotherston, a cosmogonia maia-quiché Popol Vuh, que a editora Iluminuras publicará em 2006. Trata-se de uma cosmogonia escrita em versos.

 

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