Variação II

 

 

esquartejada entre meus desejos contraditórios, no mar vermelho-sangue, você tenta escapar, prisioneira [finalmente] das minhas fantasias cruéis, das minhas profanações perpétuas, você me obriga a levantar a cabeça, forço o pincel, assassino a recordação das minhas faltas de fé anafóricas, no teu retrato espelhado, descubro as vertentes do meu pensamento esquecidas, minha vida verdadeira escondida debaixo de tua pele, teu corpo, meu altar, tento pintar-te a imagem e semelhança das oscilações da minha carne, que teu sorriso repare a ausência — e você, me implorando para lhe deixar no mundo das sombras, mas você é minha: c'est ainsi, sou a sua força, seu masculino.

necessário. útil. queria: vital.

volto, glory box, te vejo, presa, tento gritar: mas as cores, minhas cores, são violentas, armas mais eficazes ainda que as algemas que você colocou em minha alma.

/eu pinto porque dói/

e de repente você abdica, dentro de um mar vermelho, uivando todos os desejos, mais densa que um silêncio, enquanto você me presenteia, tremendo, rasgada nas suas entranhas, uma lição das trevas [se a noite pode se ensinar].

murmura (ouço você): "spread your broken wings".

— deixo o pincel na tela, melhor assim.

 

 

 

 

 

 

Variação VIII

 

as pinceladas se fazem dispersas quando tento descrever as marcas carnais no meu corpo, aspirações profundas da carne, quero te penetrar corpo e alma em recordação, corro em busca desse tempo desmaiado, te perdi, te perdi definitivamente, onde correr, agora?

— você estava e já não é mais, nessa tela invadida pelos meus fantasmas que desacreditam nos seres humanos —

 

anywhere, but out of this world.

 

 

 

 

 

 

Variação IX

 

volto-me: é dor, dor, lembranças tatuadas, e você, crucificada na minha pele, assim, definitiva.

 

 

 

 

 

 

Variação XI

 

tenso, tenso como uma epifania que busca seu anjo, desejo inteiro, plena aspiração, revolução histórica, vencendo esquecimentos, sentimental binário, sinto o desejo subir minhas escadarias oníricas, concretização imanente desejo/prazer, não tenho coragem de formular perguntas, fervores, esperarei a noite, aguardarei o momento onde teu sopro supera o vento, onde as palavras estão disponíveis,

— você, gotas de suor, lendo o Evangelho segundo Jesus Cristo, quiero ser el único que te muerda la boca — no meio das palavras disponíveis, silêncio da noite onde tudo era.

 

 

 

 

 

 

Variação XII

 

você emerge das minhas mãos, subitamente, fruto da minha espera desejo, esperma no teu corpo, fruto das entranhas, corpsencore, indo até a carne da minha aspiração oh luz luz luz

 

meus olhos

inesperada

vêem

vêem finalmente

 

orfeu insubmisso aos eternos retornos, mon amour

cego o passado com a luz dos teus olhos

teu beijo é meu batismo e é

 

 

— tempo eterno, sim -

 

 

 

 

[5 variações de Blue Note Insônia. Belo Horizonte: Anome Livros, 2007]

 

 

 

 
 

Chave

 

O vento alisa

as dunas

Na carícia

da pele

pela leve brisa

na lua nascente

serena liberdade

aparição estrelada

revolucionária

nossos sopros

juntados

fragmentos de tempo azul

silhuetas se destacam

respiramos juntos

 

e quem me dera, amor,

que não seja por acaso.

 

 

 

 

 

 

Amor na trincheira

 

alterei a ordem dos mergulhos no abismo

o arquivo de teus abraços

não sobreviveu ao back-up

 

afundo lentamente em ondas translúcidas

 

isso porque eu queria ser

o sol emergente

nos teus olhos deitados.

 

 

 

 

 

 

Olho

 

monstros emergentes

sobem nas veias no vento

na anestesia geral

 

o incêndio do mundo é invisível

 

 

 

 

 

 

Hóstia

 

deus existe

nós o encontramos

num quarto de hotel

de uma cidade mineira

cortinas rasgadas

em tempos de carnaval

os músculos do teu corpo

me agarravam

era luz, amor

voltando do imaginário pro entendimento

sem definição

movimentos do prazer eterno

e era suor

era saliva,

a santa ceia

do teu corpo.

 

 

 

 

 

 

Dorian gray

 

no teu retrato espelhado

descubro as vertentes do meu pensamento esquecidas

 

— você, ressuscitando hora após hora a infância dos meus sonhos ocultos -

 

decriptagem analfabética

 

dos meus atos falhos

das minhas faltas de fé anafóricas

 

teu sorriso

repara

a Ausência

 

 

 

 

 

 

Gol

 

geneticamente programada a te absorver

procuro na noite unidades escondidas

enquanto tua caixa preta informa que existe

aquele medo

que nos faz escolher

 

 

 

 

 

 

UTI

 

suspenso ao eletrocardiograma

do telefone impossível

preciso saber

se existem vidas passadas que nos castigam de querer viver essa

 

 

 

(imagem ©raugel)

 

 

 

 

Tânia Alice é escritora, encenadora e doutora em Letras e Artes pela Universidade de Aix-Marseille I (França). Atualmente, é professora de Estética Teatral na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Escreveu e dirigiu, entre outros, Um breve retrato da dor (dá pra sentir), inspirado no trabalho da performer Sophie Calle e SerOuNãoSer.com (CE). Dirigiu "O Amor de Fedra de Sarah Kane", em parceria com Gilson Motta (MG/RJ). Publicou o livro infantil Todo mundo sabe!, com ilustrações de Christophe Esnault (Omni Editora, 2005); a trilogia infantil Solo para Dona Tartaruga, Por água abaixo (ou: a incrível história de dois peixes-palhaço) e Segredo no ar, com ilustrações de Sanzio Marden, bem como vários contos, poesias e ensaios em revistas, jornais e na internet. Estréia em poesia com Blue note insônia, livro prefaciado por Guiomar de Grammont.

 

Mais Tânia Alice em Germina

Entrevista