Em sua origem, o Nós do Morro [www.nosdomorro.com.br] é um grupo de teatro, formado por adolescentes e jovens da comunidade do Vidigal. Foi fundado por Guti Fraga, e hoje, completando vinte anos de existência, acumula uma série de prêmios e participações em festivais de teatro. Em 1993, os cineastas Rosane Svartman e Vinícius Reis começaram a filmar um documentário sobre o trabalho do grupo, e acabaram se envolvendo. Passaram a freqüentar cada vez mais o Vidigal, até que alguém sugeriu que eles começassem a dar aula de cinema. Foi assim que em 1996 surgiu o Núcleo de Cinema do Nós do Morro. No início, só Rosane e Vinícius davam aula no Núcleo, mas eles foram trazendo convidados, as turmas foram crescendo e se estruturando em um curso completo, como é hoje.
Conhecer o casarão onde o Nós do Morro funciona é uma ótima experiência para rever conceitos e deixar clichês de lado. Para quem imagina que um projeto funcionando numa favela, com a grande maioria de seus integrantes sendo moradores do Vidigal teria a cara de um programa de assistência social, a visita é uma surpresa. O casarão está sempre lotado de gente indo e voltando de aulas, discutido teatro e cinema, assistindo e fazendo filmes. É um lugar onde se faz arte. Além do Núcleo de Cinema e do grupo de teatro, o local abriga ainda um Ponto de Cultura, um programa do Governo Federal que busca desenvolver manifestações culturais em áreas carentes.
O casarão, uma construção imponente com uma das vistas mais bonitas do Rio de Janeiro, pertencia a um falsificador de arte até ser confiscado pelo governo por causa de dívidas de impostos e ir a leilão. Assim que soube que a casa tinha ficado vaga, os integrantes do Nós do Morro, na época tendo como único espaço um pequeno teatro no Vidigal, ficaram interessados em se mudar para lá. A chance veio quando representantes de uma ONG holandesa, em visita ao Brasil, impressionaram-se com o trabalho do grupo e se ofereceram para colaborar. A ajuda veio com a compra da casa, que está emprestada ao grupo por tempo indeterminado.
Ainda hoje, O Núcleo de Cinema sofre por falta de recursos. O único patrocinador perene é a Petrobrás, que garante a ajuda de custo dos professores. Quase todo o material por lá é emprestado ou doado, às vezes pelos próprios alunos. As salas de aulas são meio improvisadas. Mas nada disso importa.
Como provam os filmes que têm sido produzidos por alunos e ex-alunos. É o caso de Mina de Fé, de Luciana Bezerra, que ganhou o prêmio de melhor curta em Brasília e rodou por outros festivais no mundo inteiro. Ou "Neguinho e Kika", de Luciano Vidigal, o primeiro filme do Núcleo de Cinema a ter carreira internacional. Luciana, Luciano e Gustavo Melo (de "O jeito brasileiro de ser português" e o recente "Picolé, pintinho e pipa") formam o trio responsável pelos filmes — todos curtas, por enquanto — que têm espalhado o nome Nós do morro na imprensa.
Mas a produção do Núcleo de Cinema vai muito além disso e inclui projetos em parceria com a Central Única de Favelas (CUFA), o Nós do Cinema (uma ONG que também forma jovens cineastas em comunidades cariocas), e mesmo cineastas e produtores do asfalto, como Cavi Borges, da locadora Cavídeo. E nas salas de aula há uma nova geração pronta para sair do forno.
A produção cinematográfica do Nós do Morro reproduz o espírito de comunidade que se vê no casarão. Embora haja nomes de destaque, os filmes são fruto de um cinema de equipe, onde os integrantes do coletivo revezam-se em diferentes funções nos filmes dos colegas. Esse mesmo espírito de comunidade é o que leva os ex-alunos a nunca deixarem o projeto. Muitos dos que já se formaram continuam como multiplicadores — dando aula para os mais novos.
Outro motivo pelo qual os filmes do Núcleo de Cinema têm recebido atenção da mídia é a visão que eles trazem da vida na comunidade. Num país onde a produção cinematográfica desde o Cinema Novo tem quase obsessão por temas sociais, já tendo abordado a favela por tantos ângulos diferentes, esse ângulo — de dentro — é surpreendentemente pouco explorado. Na verdade, não é tão surpreendente assim, se pensarmos na dificuldade de obtenção de recursos para fazer um filme. De qualquer jeito, é essa visão de dentro que permite que se veja um filme como o que foi recentemente produzido como exercício para uma aula. O mini-curta conta a história de dois vizinhos que se comunicam pelo som de suas risadas que vaza por uma parede fina. Sem traficantes, sem crítica social. Apenas um relato sobre a vida na comunidade.
novembro/dezembro,
2006
Felipe Sholl (Rio de Janeiro-RJ, 1982). Formado em jornalismo pela UERJ,
estudou roteiro na Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Mestrando da ECO/UFRJ
com a dissertação "Cinema e inconsciente: interseções na obra de David Lynch".
Escreveu, em 2004 e 2005, para o site do Festival do Rio. É
roteirista do curta-metragem Ao lado, em fase de
pré-produção.
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