1. Em "Educação pela Pedra", texto publicado em 1966, lemos o seguinte:
O engenho banguê (o rolo compressor,
mais o monjolo, a moela de galinha,
e muitas moelas e moendas de poetas)
vai unicamente numa direcção: na ida.
Ele faz quando na ida, ou ao desfazer
Em bagaço e caldo; ele faz o informe;
Faz-desfaz na direcção de moer a cana,
Que aí deixa; e que de mel nos moldes
Madura só, faz-se: no cristal que sabe,
O do mascavo, cego (de luz e corte)
2.
Sofia vai de ida e de volta (e a usina);
Ela desfaz-faz e faz-refaz mais acima,
E usando apenas (sem turbinas, vácuos)
Algarves de sol e mar por serpentinas.
Sofia faz-refaz, e subindo ao cristal,
Em cristais (os dela, de luz marinha).1
Intitulado "Elogio da Usina e de Sofia de Melo Breiner Andresen", este poema de João Cabral de Melo Neto sugere-nos, mais do que uma homenagem à poeta portuguesa de "Coral", a evidência de um modo de fazer poético que poderemos assimilar à prática discursiva destes dois autores: o claro entendimento do poeta enquanto um fabbro, um artista da linguagem, representado neste poema na imagem do "engenho banguê" e da analogia que é estabelecida com as "moendas de poetas", assim como na univocidade sugerida na direcção e no movimento do fazer e do desfazer, que nos remetem para a imagem clássica do tecer do texto, numa actividade de paciência e de reflexão inerente ao depuramento dos materiais que dão origem ao poema. Poetas como Sophia, no entanto, não se conformam com esta univocidade: o regresso ao poema e, por metonímia, à poesia, é feito pelo acto da recriação a partir dos mesmos materiais que, seguindo imagens que constituem topoi conhecidos na sua poesia, esta recolhe e reconfigura a partir do mundo natural, sobretudo no elemento marítimo (os "Algarves de sol e mar por serpentinas"). A imagem do engenho açucareiro não poderia ser mais pertinente nesta caracterização: as virtualidades homonímicas do lexema ‘engenho’ advêm da sua etimologia (ingeniu), donde divergiram tanto ‘máquina ou aparelho’ ou ‘estabelecimento agrícola destinado à cultura da cana e à fabricação do açúcar’ como ‘habilidade, destreza’2, neste último sentido aproximando-se do tópico clássico horaciano do poeta enquanto artifex linguae. A polissemia de "engenho" é bastante profícua no que diz respeito a João Cabral, partilhando com Sophia de Mello Breyner, no sentido que referimos anteriormente, uma valorização formal assinalável. Não se trata, no entanto, de assumir para a poética de cada um destes autores uma vertente formal obsessiva, ou de uma excessiva referência ao real e ao concreto, que uma reiterada reflexão sobre o processo criativo proporcionada por ambos podem levar a supor: como poetas e, consequentemente, criadores, os dois demonstram uma nítida percepção dos limites da criação poética no sentido de expressão unívoca e concreta do real, ultrapassando o sentido de uma mera manipulação técnica da palavra, uma espécie de exacerbamento da expositio retórica. As afirmações de Octavio Paz sobre este processo são elucidativas a este nível no sentido de acentuar que "En la creación poética no hay victoria sobre la materia o sobre los instrumentos, como quiere una vana estetica de los artesanos, sino un poner en libertad la materia."3 Escrever um poema é, assim, abrir um mundo de sentidos, possível através da transmutação da linguagem sob o signo da liberdade, num movimento para a palavra que "no consiste en abandonar su naturaleza original sino en volver a ella. Ser "otra cosa", quiere decir ser la "misma cosa": la cosa misma, aquello que real y primitivamente son." (idem) Esta operação poética de transmutação ocorre, assim, num sentido fenomenológico, graças ao encontro da palavra com o real, na medida em que, como António Ramos Rosa evidenciou, " a imagem poética cria o seu espaço, anulando a distância da significação representativa, impondo uma presença original. Palavra e objecto identificam-se. Nesse espaço todos os encontros são possíveis e todo o possível se torna real."4; nesta perspectiva, o trabalho do poeta é valorizado, uma vez que "o conteúdo surge da totalidade das formas que o poeta vai descobrindo na sua tentativa de estabelecer correlações cada vez mais complexas e unas com vista à realidade original com que entrou em contacto"(idem, p. 52). É neste trabalho de complexidade que advém do encontro fenomenológico com o imanente que procuraremos situar as poéticas da referencialidade de João Cabral de Melo Neto e de Sophia de Mello Breyner Andresen, cuja leitura dialogal pretendemos, neste trabalho, promover. O nosso interesse, neste sentido, não se dirige às eventuais práticas transtextuais entendidas no âmbito mais restrito da influência mas a uma reflexão em torno das leituras metapoéticas5 que muitas composições de ambos reconhecidamente suscitam e que caracterizam uma parte da sua produção. Tomaremos também em consideração o diálogo metapoético que desenvolveram em alguns poemas e que a composição que inicia este estudo surge enquanto exemplo representativo.
2. A reflexão em torno do processo criativo por parte de João Cabral de Melo Neto é visível desde a sua primeira obra, Pedra do Sono, constituída por textos escritos entre 1940 e 1941 e publicada em 1942. Nesta verificam-se já alguns dos elementos que macrotextualmente veremos tematizados ao longo dos livros seguintes. Uma leitura atenta proporciona-nos a visibilidade que merece o binómio construção/destruição na definição da sua poética; por um lado, a construção que se definirá enquanto leitmotiv poético, associada a uma demanda da geometrização, que poderá estar aludida no poema "Homenagem a Picasso" ("O esquadro disfarça o eclipse / que os homens não querem ver")6, sinal que o ensaísta António Cândido, num artigo publicado em 1943 e que mereceu a sua admiração, interpretou como uma referência à influência cubista, que complementou com a surrealista, na obra do poeta nordestino.7 Esta tendência surrealizante aparece implícita em alguns poemas na combinação metafórica das imagens oníricas que visam o insólito, como no caso do poema "Espaço Jornal" — "No espaço jornal / a sombra come a laranja / a laranja se atira no rio, / não é um rio, é o mar / que transborda de meu ôlho. // No espaço jornal / nascendo do relógio / vejo mãos, não palavras, / sonho alta noite a mulher / tenho a mulher e o peixe." (p. 451). Aqui perscrutaremos o início de uma preocupação pelo rigor formal, acentuada nos versos atrás transcritos pelo uso da anadiplose e pela repetição dos mesmos vocábulos no verso inicial nas restantes estrofes, circularmente encerrando todo o poema. No entanto, mais do que uma imagem de motivação surrealista, verificamos que a este processo construtivo não estará ausente o outro pólo da concepção dialéctica enunciada que é o da destruição, num certo sentido associada à anulação do sujeito no processo inerente ao labor poético, como em "O Poema e a Água" ("As vozes líquidas do poema / convidam ao crime / ao revólver"- p. 451), imagem associada a uma composição precedente, "Poema deserto", com os versos "Eu me anulo me suicido / percorro grandes distâncias inalteradas, / te evito te executo / a cada momento e em casa esquina" (p. 44), onde a ambiguidade do lexema "executo", nos seus semas de ‘morte’ e ‘produção’, pode conduzir-nos a uma relação mais directa com a sua prática discursiva. Por outro lado, esta anulação do sujeito será relacionável com uma progressiva recusa do lirismo imposto por uma poética da subjectividade que caracterizara alguns autores que o antecederam, a qual foi objecto de acesa crítica desde as primeiras produções do modernismo8. Ao referir-se à poética de João Cabral e à sua importância no seio da Geração de 45, Gilberto de Mendonça Teles acentua como um dos tópicos por ele desenvolvidos a objectividade linguística e a busca de estruturas sólidas para o poema através da eliminação de qualquer traço de sentimentalismo.9 O processo de eliminação que se estende ao autor encontra a sua origem, no contexto da modernidade, em Mallarmé, dado que, conforme Roland Barthes e outros autores fizeram notar, "toda a poética de Mallarmé consiste em suprimir o autor em proveito da escrita"10, sendo que a sua arte da palavra "tem a própria estrutura do suicida: o silêncio é aí um tempo poético homogéneo que faz pressão entre duas camadas e faz explodir a palavra não como o fragmento de um criptograma mas como uma luz, um vazio, um assassínio, uma liberdade."11
Algumas destas reflexões encontraram continuidade em duas obras posteriores, "O Engenheiro" (1942-1945) e, sobretudo, em "Psicologia da Composição com a Fábula de Anfion e Antiode"(1946/1947), nas quais se evidencia significativamente uma insistência auto-reflexiva perante o processo criativo. Na primeira obra, dedicada a Carlos Drummond de Andrade, o poema que corresponde ao título retoma a questão do ingenium, novamente assimilada à imagem do "engenheiro", com a referência directa ao mundo sensitivo enquanto objecto de apreensão do real, transmutado através do seu imaginário: "A luz, o sol, o ar livre / envolvem o sonho do engenheiro. / O engenheiro sonha coisas claras: superfícies, tênis, um copo de água. // O lápis, o esquadro, o papel; / o desenho, o projecto, o número: / o engenheiro pensa o mundo justo, / mundo que nenhum céu encobre" (p. 416). A geometrização assume-se agora na sua plenitude, ultrapassando as metáforas surrealizantes de "Pedra do sono" e procurando neste livro o enquadramento num discurso onde o rigor e a construção encontram lugar de destaque. No poema transcrito, o ritmo ternário confunde-se com o trimembramento do verso, cuja continuidade enumerativa é acentuada novamente pelo recurso à anadiplose, como se o poema fornecesse um itinerário contínuo que o leitor deverá percorrer. A simplicidade da selecção vocabular confunde-se com a preferência pelos nomes concretos ("lápis", "esquadro", "papel"), cujo grau de objectividade é reforçado pela determinação deíctica, recorrente nesta composição. Encontramo-nos diante do projecto da clareza, que o autor assumirá como parte integrante da sua poética, ao admitir numa conferência em S. Paulo em 1952, que "O poema é escrito pelo olho crítico, por um crítico que elabora as experiências que antes vivera, como poeta". Assim, "O artista intelectual sabe que o trabalho é a fonte da criação e que a uma maior quantidade de trabalho corresponderá uma maior densidade de riquezas".12 Teremos, deste modo, como determinante a ideia do labor associado à escolha diante da experiência de que dispõe e que o levam à poética da dificuldade, assinalada por Maria Andresen de Sousa Tavares como uma consequência da própria necessidade de exprimir o concreto – "O concreto das coisas que se forja aqui está, por deliberação, inseparado da dificuldade de o dizer; o rigor posto nesta dicção elabora-se no saber de tal custo, alimenta-se dele e da tenacidade que implica"13. Também António Ramos Rosa entendeu as abordagens de carácter analítico e objectivo ao real como decorrentes de uma necessidade imposta pela própria palavra poética14, sujeita a um processo de selecção e de depuração que advêm da dificuldade. O poema "A lição de poesia" é um exemplo dessa luta agónica do poeta com a folha em branco, numa visão processual diacrónica única que se encontra dominada pela temporalidade, marcada por constantes referências:
1.
Toda a manhã consumida
como um sol imóvel
diante da folha em branco:
princípio do mundo, lua nova.(...)
nem no meio-dia iluminado,
cada dia comprado,
do papel, que pode aceitar,
contudo, qualquer mundo.
2.
A noite inteira, o poeta
em sua mesa, tentando
salvar da morte os monstros
germinados em seu tinteiro
Monstros, bichos, fantasmas
de palavras, circulando,
urinando sobre o papel,
sujando-o com seu carvão.
Carvão de lápis, carvão
da idéia fixa, carvão
da emoção extinta, carvão
consumido nos sonhos.
3.
A luta branca sobre o papel
que o poeta evita,
luta branca onde corre o sangue
de suas veias de água salgada.(...)
E as vinte palavras recolhidas
Nas águas salgadas do poeta
E de que se servirá o poeta
Em sua máquina útil.
Vinte palavras sempre as mesmas
De que conhece o funcionamento,
A evaporação, a densidade
Menor que a do ar" (pp. 424-425)
A "lição da poesia" é a da dificuldade que nasce do esforço da depuração; é um trabalho perante o novo, representado na imagem da "folha em branco" que se confunde com o genesis ("o princípio do mundo, lua nova") desta produção. A noite é o cenário desta luta, numa tensão imagética que nos faz recordar alguns cenários dos "Caprichos" de Goya, sobretudo o Capricho 43, intitulado "O Sono da Razão Produz Monstros". O Sono do poeta é o do Real, com o qual esgrime os instrumentos da sua escrita, numa estratégia que passa pela selecção de um corpus verbal que procura dominar intimamente ("as vinte palavras recolhidas / nas águas salgadas do poeta / e de que se servirá o poeta / em sua máquina útil // Vinte palavras sempre as mesmas / de que conhece o funcionamento"), no movimento combinatório e paradigmático de que os versos atrás transcritos são um exemplo. Na opinião de Ramos Rosa, "esta rarefacção lexical resulta da procura de uma ordem ou de um equilíbrio que contrabalance a «desordem da alma», ou seja, a nebulosidade da afectividade, a sua dispersão, a sua fuga, que a tornam inapreensível"15. Será nesta demanda, circular pela sua impossibilidade, que transitará o seu esforço, através da depuração da linguagem que parte do branco da folha de papel. Eucanaã Ferraz acentua esta insistência na importância do ‘branco’ na sua poesia, atribuindo-lhe o semantema clássico de ‘purificação’, associando-lhe todas as imagens da cal e, sobretudo, da folha de papel vazia; para este, "o acto poético reveste-se, assim, de uma condição dual: por um lado, a poesia aspira à máxima depuração, à pureza do branco, metáfora de próprio silêncio que, no entanto, deve ser obrigatoriamente rompido para que se dê a construção do poema; por outro lado, se a palavra conspurca o vazio da folha, o branco estende a sua natureza até ao verso"16 Estas ideias aparecem confirmadas em outros poemas da obra, como "O poema" – "O papel nem sempre / é branco como / a primeira manhã (...) mas é no papel, / no branco asséptico, / que o verso rebenta" (p. 423), continuando presente na obra seguinte, "Psicologia da Composição", na segunda parte do poema homónimo: "Esta folha branca / me proscreve o sonho, / me incita ao verso / nítido e preciso"(p. 401) . Em ambos os casos, a folha em branco aparece como o grau zero desta criação; é precisamente Roland Barthes em "Le Degré Zero de l’Écriture" que indica como uma das funções possíveis para a libertação da linguagem literária a criação de uma escrita branca, livre de uma ideologia triunfante por ser neutra, tornando-se num instrumento formal que é o meio de existir de um silêncio. Segundo as suas palavras, "Se a escrita for verdadeiramente neutra, se a linguagem, em vez de um acto incómodo e indomável, atingir o estado duma equação pura(...), então a Literatura é vencida, a problemática humana é descoberta e transmitida sem cor, o escritor é irremediavelmente um homem honesto"17. Claro que nada haverá de mais utópico, como o próprio logo a seguir reconhece, ao referir que "Infelizmente não há nada mais infiel do que uma escrita branca", atendendo ao endurecimento a que linguagem vai sendo submetida pelo processo de escrita, que tende a pouco e pouco ir perdendo a sua "frescura primeira do discurso". João Cabral não é excepção a este facto, procurando seguir outros processos de libertação da linguagem, que passam pelo apuro formal, os quais pôde apreender nas concepções de Mallarmé sobre o labor poético, estudadas por Paul Valéry. A propósito do poeta de « Un Coup de Dés », Valéry assinala que "le travail sévère, en littérature, se manifeste et s’opère par des refus. On peut dire qu’il est mesuré par le nombre des refus"18. Considerando que a admiração por Stéphane Mallarmé por parte de João Cabral é efectiva, tendo em consideração os testemunhos pessoais que lhe reconhecem grande importância no domínio do rigor e do trabalho organizativo do verso, Rosa Maria Martelo salienta que, na realidade, é a obra crítica de Paul Valéry que estabelece uma proximidade entre os dois poetas, sendo que "esta proximidade é objecto do metatexto cabralino, onde se lê um Valéry que antes se relera em Mallarmé..."19. Na perspectiva desta ensaísta, o grande contributo de Valéry diz respeito, sobretudo, à imposição de uma reflexão teórica que envolve a valorização do trabalho intelectual e a necessidade de uma cuidadosa estruturação do discurso poético, a qual resultará nas produções metapoéticas que caracterizam uma parte da produção cabralina. Por outro lado, o contributo e importância de Mallarmé (lido ou não através de Valéry) foram objecto de amplo reconhecimento nos textos programáticos do movimento da Poesia Concreta, sendo o seu "poema-planta", "Un Coup de Dés"20 (1897), reconhecido como ponto de partida para as produções concretistas posteriores. Augusto de Campos, um destes teorizadores, assim o entende num texto publicado em 1955, concedendo a João Cabral de Melo Neto uma importância pioneira: "No Brasil, o primeiro a sentir estes problemas, pelo menos em determinados aspectos, é João Cabral de Melo Neto. Um arquitecto do verso, Cabral constrói seus poemas como que a lances de vidro e cimento. Em Psicologia da Composição, com a "Fábula de Anfion" e "Antiode"(1946-1947), atinge a maturidade expressiva, já prenunciada em O Engenheiro"21. Apesar de ter exercido grande influência na produção dos poetas concretistas, a verdade é que este nunca terá produzido poesia concreta no sentido atribuído ao termo pelo Grupo Noigrandes, para além do facto de todas estas preocupações com a materialidade da palavra precederem mesmo a ascensão deste movimento no Brasil.22
A Fábula de Anfion, como vimos, é na opinião de Augusto de Campos o momento pleno da maturidade expressiva de João Cabral. Esta figura mitológica está ligada ao encantamento e à edificação, pois foi graças à sua música que se talhou a cantaria e se ergueram as muralhas de Tebas. Esta personagem fora anteriormente trabalhada por Paul Valéry em Histoire d’Amphion, onde a narrativa mitológica é respeitada com o intuito de uma divinização do acto criador através das relações entre música e arquitectura. O Anfion de João Cabral, no entanto, é livremente recriado e a sua divinização é substituída pela sua humanização: a fábula começa por enquadrá-lo numa paisagem desértica, a "paisagem de seu / vocabulário", "entre pedras / como frutos esquecidos / que não quiseram // amadurecer" (p. 395). A esterilidade e a secura poderiam reportar-se ao arquétipo desértico que, em outras obras, é associado ao Nordeste brasileiro e à figura do retirante. A idealização do herói mitológico é substituida por um anti-herói cuja obra é, na verdade, fruto do acaso, o mesmo que "ataca e faz soar a flauta", de acordo com uma epígrafe inserida no corpo da obra, verificando-se uma transferência do agente heróico que é o Anfion clássico para o objecto (a flauta) que, de acordo com o poema cabralino, é responsável pela edificação, processo que comporta uma suposta incontrolabilidade – "Uma flauta: como prever / suas modulações, / cavalo solto e louco? // Como traçar suas ondas / antecipadamente, como faz, / no tempo, o mar?"(p. 400). Esta transferência não será o único efeito no processo dessacralizador do mito. Conforme assinalou Eucanaã Ferraz, "o mais flagrante é a inexistência da música, numa secura silenciosa reforçada pela ausência de musicalidade no texto, construído de modo fragmentário e restritivo, impeditivo de qualquer enlevo melódico."23. A atitude celebrativa da palavra poética de Valéry não encontra eco na paisagem deserta e dura que sustenta o Anfion de João Cabral: a sua poética desenvolve-se a partir da exiguidade. "Por meio de Anfion, o poeta instala-se no vazio da terra, num sítio para a possessão e domínio onde só cabem a simplicidade e a radicabilidade, onde qualquer construção tem o valor de um mundo que se inaugura, quando tudo é absoluto e grave" (idem, p. 82). A construção integra-se nessa visão arquitectural que parte do vazio, aspectos que, como vimos, foram sendo assumidos com maior veemência desde a obra anterior. A arquitectura, para João Cabral de Melo Neto, impõe-se na sua geometrização e racionalidade, brancura e despojamento que, como é sobejamente conhecido, admirava na obra de Le Corbusier. Os materiais do poeta, as palavras, adquirem assim propriedades análogas às da pedra, transformando-se este, num certo sentido, num escultor.
A série de poemas que constituem Psicologia da Composição podem situar-se no contexto de um dos mais significativos conjuntos de reflexões metapoéticas presentes na sua obra. A este facto não deixará de estar relacionada a referência paródica exercida no título, releitura da "The Philosophy of Composition" de Edgar Allan Poe. Um dos poemas (VII) aponta esse caminho de progressiva mineralização, ao incluir este itinerário no processo criativo, que culminará na totalização reveladora em "É mineral, por fim, / qualquer livro: / que é mineral a palavra / escrita, a fria natureza // da palavra escrita" (p. 404). A imagem da concha aparece como outro elemento produtivo neste processo de mineralização enquanto mais uma forma de expressão do concreto. De um ponto de vista fenomenológico, Gaston Bachelard atribui-lhe a realidade geométrica das formas, reportando-se precisamente a Paul Valéry e a um texto por este redigido, "Les coquillages": "Parece que para o poeta, grande cartesiano, a concha é uma verdade da geometria animal bem solidificada, portanto ‘clara e distinta’"24. Expressão desta concepção será o primeiro poema desta série, que a seguir transcrevemos:
Saio de meu poema
como quem lava as mãos.
Algumas conchas tornaram-se,
que o sol da atenção
cristalizou; alguma palavra
que desabrochei, como a um pássaro.
Talvez alguma concha
dessas (ou pássaro) lembre,
côncava, o corpo do gesto
extinto que o ar já preencheu;
talvez, como a camisa
vazia, que despi.25
Esta referência à pedra irá tornando-se cada vez mais presente na sua obra. António Ramos Rosa entende-a como contraposta à dispersão e à inapreensibilidade da dimensão afectiva e subjectiva, pela solidez, permanência e ordem nela consubstanciadas26, ideias que veremos desenvolvidas em "A Educação pela Pedra" (1966). O poema homónimo uma vez mais nos fornece pistas importantes para a definição da sua poética, do qual transcreveremos em seguida a primeira parte:
Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, frequentá-la;
captar a sua voz inenfática, impessoal
(pela dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições da pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la. (p.130)
Este aspecto didáctico da pedra foi sublinhado por Eduardo Prado Coelho num ensaio que redigiu a propósito desta obra, onde é colocada em evidência a preocupação de João Cabral de Melo Neto em atribuir à sua poética um carácter mais sistemático e uma atitude moral, a qual se concretiza através de uma clarificação do poema; como refere, "A palavra e a pedra precedem o homem (posição materialista), mas o homem e o poema, no processo de produção, transformam a pedra e a palavra, embora aceitando para tal as regras que elas lhe impõem: a palavra como guia (os jogos de palavras), a pedra como educadora."27. O que é possível aprender a partir da pedra? Num primeiro instante, e como já verificáramos anteriormente neste estudo, a lição da impessoalidade, uma das linhas de força comuns às poéticas da modernidade, com a eliminação de um lirismo psicologista alicerçado num exagero de subjectividade, de que poemas anteriores, como "Antiode" em "Psicologia da Composição", em cuja epígrafe lemos "contra a poesia dita profunda": "Poesia, te escrevia: / flor! conhecendo / que és fezes. Fezes / como qualquer, // gerando cogumelos / (raros, frágeis cogu-/melos) no úmido / calor de nossa boca"(p. 405). Da pedra é ainda possível colher a "lição de moral", na resistência física que comporta, assim como a "lição de poética", com a metáfora da "carnadura concreta"; por fim, a "lição de economia", já anteriormente demonstrada e que encontra no conhecido poema "Catar Feijão" o símile do peneiramento verbal que a operação poética comporta:
Catar feijão se limita com escrever:
joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na da folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda a palavra boiará no papel,
água congelada, com chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco. (idem, pp. 138-139)
Outra forma de relacionar a pedra com a palavra ainda no âmbito deste gesto de depuração essencial ao acto criativo reside no sofrimento que o mesmo implica. O poema "O Sertanejo falando" pode ser lido enquanto imagem do labor do poeta pois tal como o sertanejo "tem de pegar as palavras com cuidado":
A fala a nível do sertanejo engana:
as palavras dele vêm, como rebuçadas
(palavras confeito, pílula), na glace
de uma entonação lisa, adocicada.
Enquanto que sob ela, dura e endurece
o caroço de pedra, a amêndoa pétrea,
dessa árvore pedrenta (o sertanejo)
incapaz de não se expressar em pedra.
2.
Daí porque o sertanejo fala pouco:
as palavras de pedra ulceram a boca
e no idioma pedra se fala doloroso;
o natural desse idioma fala à força.
Daí também porque ele fala devagar:
tem de pegar as palavras com cuidado,
confeitá-las na língua, rebuçá-las;
pois toma tempo todo esse trabalho. (p. 128)
De acordo com a síntese proposta por João Almino, João Cabral de Melo Neto propôs nas sua obras até "A Educação pela Pedra" uma atitude antilírica e mesmo "arriscou-se também a um esmero formal que poderia parecer antiquado após o modernismo, mantendo sempre o autor uma grande qualidade na escrita: por regra, polia os textos a fio, deixando decantar o impulso e a emoção, depois escavados, como num trabalho arqueológico, por ferramentas afiadas"28. Nesta derradeira afirmação, interessa-nos a imagem das "ferramentas afiadas", os instrumentos cortantes que se encontram na base de uma poética que persegue com insistência a abolição do que não entende como essencial para a sua obra (o que poderia ser apreendido como a reiteração do tópico horaciano do inutilia truncat), num processo que, recorrendo uma vez mais ao símile mineral, o tornam não apenas um escultor, mas também um lapicida. A sua poética adquire assim uma dimensão sacrificial pela exigência que o trabalho poético impõe e que na imagem da faca e de outros instrumentos cortantes colhe ampla produtividade, como demonstrou numa passagem da obra "Uma Faca Só Lâmina (ou serventia das ideias fixas)", de 1955:
Quando aquele que os sofre
trabalha com palavras,
são úteis o relógio,
a bala e, mais, a faca.
(...)
Pois somente essa faca
dará a tal operário
olhos mais frescos para
o seu vocabulário
e somente essa faca
e o exemplo de seu dente
lhe ensinará a obter
de um material doente
o que em todas as facas
é a melhor qualidade:
a agudeza feroz,
certa eletricidade,
mais a violência limpa
que elas têm, tão exatas,
o gosto do deserto,
o estilo das facas. (pp 287-288)29
O "estilo das facas", no entanto, poderá motivar reflexões que não implicam apenas esse culto pelo apuro formal. Marta Peixoto, por exemplo, aponta a "linguagem-faca", em certos textos cabralinos, como instrumento ao serviço da luta social a favor dos excluídos (recordemos Severino em "Morte e Vida Severina")30. Por outro lado, Maria Andresen de Sousa Tavares atribui-lhe implicações ontológicas, ao declarar que "o eu fazedor é a ficção de um eu em libertação do apodrecimento inscrito no tempo e na natureza que, enquanto matéria orgânica, é símile da morte. Daí o elogio das matérias naturais duras e secas como o deserto e a pedra. E daí também toda a importância de objectos cortantes e artificiais – faca, bisturi, vidro, lente, luneta (...)" (op. cit., p. 260).
Em qualquer dos casos, e como procuraremos observar em seguida, encontraremos releituras deste tema enquanto tópico da poética de João Cabral de Melo Neto nos "cristais de luz marinha" que constituem os versos de Sophia de Mello Breyner Andresen.
3. Em "Arte Poética II", inserida no livro Geografia, Sophia afirmava:
"Pois a poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha participação do real, o meu encontro com as vozes e as imagens. Por isso o poema não fala de uma vida ideal mas de uma vida concreta: ângulo da janela, ressonância das ruas, das cidades e dos quartos, sombra dos muros, aspiração dos rostos, silêncio, distância e brilho das estrelas, respiração da noite, o perfume da tília e do orégão.
É esta relação com o universo que define o poema como poema, como criação poética. Quando há uma apenas relação com uma matéria há apenas artesanato.
É o artesanato que pede especialização, ciência, trabalho, tempo e uma estética. Todo o poeta, todo o artista é artesão de uma linguagem. Mas o artesanato das artes poéticas não nasce de si mesmo, isto é, da relação com uma matéria, como nas artes artesanais. O artesanato das artes poéticas nasce da própria poesia à qual está consubstancialmente unido. Se um poeta diz «obscuro», «amplo», «barco», «pedra», é porque estas palavras nomeiam a sua visão do mundo, a sua ligação com as coisas. (...) E é da obstinação sem tréguas que a poesia exige que nasce do «obstinado rigor» do poema."31
Em Sophia de Mello Breyner, a variedade que observamos nas reflexões metapoéticas em torno do acto criativo centra-se, entre outros aspectos, na questão da referencialidade. Insistentemente, é colocada em relevo a importância que o encontro com o real (a "vida concreta") assume na sua poética, com o qual entendeu combinar o exigente trabalho formal que refere no excerto transcrito, sobretudo na atenção assinalável que atribui à palavra. A propósito de "Ilhas"(1989), Joaquim Manuel Magalhães apresenta-nos uma síntese dos factores que considera serem fundamentais no seu processo criativo, destacando, em primeiro lugar, a referencialidade como intenção evocativa primeira, logo em seguida organizada num léxico que visa o concreto como forma de visão imaginativa, integrado num tecido rítmico caracterizado pela forte presença da oralidade.32 O real torna-se uma instância importante, assumida em "Arte Poética I", pela aliança que procura estabelecer com as coisas, o reino que "é aquele que cada um por si mesmo encontra e conquista, a aliança que cada um tece"33 ; assumindo a componente fenomenológica que a poesia de Sophia comporta desde os seus primeiros textos, Luís Adriano Carlos destaca que a sua escrita visaria, antes de mais, a "libertação do olhar e a presentificação das coisas na sua evidência pura e original, fora da ilusão mundana que as aliena e deforma."34 Esta libertação do olhar corresponderia a uma demonstração da sua crença no mundo manifestada em pontos de vista éticos, como de resto Joaquim Manuel Magalhães assinalou no ensaio referido anteriormente. Também Clara Rocha nos remete para esta formulação, ao encontrar uma filiação da poesia de Sophia na noção heideggeriana de desocultação35: "a procura da verdade não se confunde na sua obra com a imitação do real, e dela está ausente a preocupação realista. A procura da verdade é para Sophia a lei."36 O ponto de vista ético parte, deste modo, do real, mas não como sua representação directa, antes como um encontro com a linguagem, pois é dela que parte o seu domínio do mundo. Mais uma vez, a presença de Heiddeger é reveladora, ao encarar a palavra enquanto guardiã da coisa, de acordo com a conhecida formulação da linguagem enquanto casa do ser. Em relação ao poeta, o seu papel é, deste modo, o de um mediador entre as coisas e o nome com que estas são nomeadas, afastando-se da ideia de um mero reprodutor do real, uma vez que se trata da única via em que este real é inteiramente revelado.
Neste sentido, é grande a importância que Sophia confere à palavra e ao processo de escrita. No primeiro caso, impõe-se um trabalho rigoroso de selecção lexical, "o da opção alcançada por um modo de referenciar que seja, desde logo, um modo de escrever, um modo de ter encontrado palavras justas para o peculiar efeito de beleza que o poema demanda; ou que são nelas próprias a demanda do poema."37 No segundo, um itinerário que parte da meditação e do silêncio, entendido este último como essencial ao acto criativo, conforme declarou em "Arte Poética V" — "E aqueles momentos de silêncio no fundo do jardim ensinaram-me, muito tempo mais tarde, que não há poesia sem silêncio, sem que se tenha criado o vazio e a despersonalização"38. Em "Escrita do Poema" poderemos encontrar presentes alguns destes tópicos:
A mão traça no branco das paredes
A negrura das letras
Há um silêncio grave
A mesa brilha docemente o seu polido
De certa forma
Fico alheia39
Tal como verificámos em João Cabral, o branco aparece associado ao acto criativo, atribuindo Sophia um «estado de escrita» à ideia de possibilidade que a folha em branco valoriza e representa40. Em "A Escrita", semelhantes imagens combinam-se enquanto síntese entre o silêncio e esta possibilidade, representadas na figura de Lord Byron em Veneza, conforme os excertos que em seguida transcrevemos:
Sem dúvida ninguém precisa de tanto espaço vital
Mas a escrita exige solidões e desertos
E coisas que se vêem como quem vê outra coisa
Pudemos imaginá-lo sentado à sua mesa
Imaginar o alto pescoço espesso
A camisa aberta e branca
O branco do papel as aranhas da escrita
E a luz da vela — como em certos quadros —
Tornando tudo atento41
Entendemos, assim, as observações anteriores, sobretudo na dupla dimensão de encontro com o real e com a reflexão em torno do processo criativo e o respectivo lugar que é apontado à palavra, como aspectos a considerar numa aproximação entre as poéticas de Sophia e de João Cabral de Melo Neto. Em síntese, de acordo com Clara Rocha, o ponto de contacto pode ser estabelecido "na atenção ao concreto, a uma imanência que se oferece à desocultação"42.
A admiração que Sophia demonstrava pela poesia de João Cabral não se limita a referências ocasionais, se considerarmos que uma das suas obra, "O Cristo Cigano" (1961), surge, segundo o testemunho da autora, de uma conversa mantida entre os dois em Sevilha:
"Direi que o pretexto deste poema foi a lenda do Cristo Cachorro que me contou em Sevilha, numa igreja de Triana, o poeta João Cabral de Melo, a quem um cigano a tinha contado. Segundo a esta lenda, a imagem chamava-se Cristo Cachorro, porque o modelo do escultor tinha sido um cigano de nome Cachorro que o próprio escultor havia apunhalado"43
Por outro lado, o poema que inicia esta obra, o qual figurou apenas na sua primeira edição e só voltou a integrar o livro na edição definitiva de 2003, intitulado "A Palavra Faca", introduz-nos no processo de criação desta obra, ao procurar-lhe atribuir um estilo que directamente entende recolhido na leitura que desenvolveu a propósito da poética cabralina:
A palavra faca
De uso universal
A tornou tão aguda
O poeta João Cabral
Que agora ela aparece
Azul e afiada
No gume do poema
Atravessando a história
Por João Cabral contada.44
Claramente, o discurso metapoético apontado coloca-nos diante da apropriação consciente e motivada de um processo de escrita, propondo não apenas a releitura poética de uma lenda que ouviu contar mas um trabalho formal que exige, pela sua densidade temática, um estilo adequado, cuja fonte explicita em João Cabral. Esta ideia é novamente seguida na "Dedicatória da Segunda Edição do «Cristo Cigano» a João Cabral de Melo Neto", onde a reflexão metapoética convive com a imagem que definiu para a poética do autor de "A Escola das Facas":
I
João Cabral de Melo Neto
Esta história me contou
Venho agora recontá-la
Tentando representar
Não apenas o contado
E sua grande estranheza
Mas tentando ver melhor
A peculiar disciplina
De rente e justa agudeza
Que a arte deste poeta
Verdadeira mestra ensina
II
Pois é poeta que traz
À tona o que era latente
Poeta que desoculta
A voz do poema imanente
Nunca erra a direcção
De sua exacta insistência
Não diz senão o que quer
Não se enebria em fluência
Mas sua arte não é só
Olhar certo e oficina
E nele como Cesário
Algo às vezes se alucina
Pois há nessa tão exacta
Fidelidade à imanência
Secretas luas ferozes
Quebrando sóis de evidência45
A reflexão de Sophia contempla, num primeiro momento, a arte de João Cabral enquanto fruto da atitude de disciplina e rigor formal que procurámos colocar em evidência no segundo ponto deste trabalho. A este facto junta-se a visão heideggeriana da desocultação, pressupondo-a na perspectiva atribuída à sua poética. O sentido recto da arte poética de João Cabral, todavia, não se queda pelo "olhar certo e oficina" e por uma total submissão à imanência, num sentido quase hiper-realista, conferindo-lhe uma profundidade de olhar que compara a Cesário Verde, um dos percursores globalmente considerados na génese da modernidade poética em Portugal. Assinalavelmente, o poema que se segue em "Ilhas" é dedicado a Cesário, aquele que "Quis dizer o mais claro e o mais corrente / Em fala chã e em lúcida esquadria / Ser e dizer na justa luz do dia / Falar claro falar limpo falar rente // Porém nas roucas ruas da cidade / a nítida pupila se alucina / Cães se miram no vidro da retina / E ele vai naufragando como um barco" (idem, p. 66). Torna-se pertinente uma aproximação, de acordo com Sophia, entre estas duas poéticas no que ambas partilham relativamente à importância da "fala chã" e da "lúcida esquadria", associadas a essa "fidelidade à imanência" que os dois propugnaram.46
Para Jorge de Sena, "O Cristo Cigano" representou, na obra de Sophia de Mello Breyner, "uma curiosa experimentação profunda: por um lado, a superação da religiosidade cristã e, por outro, certa quebra com uma rítmica musical e uma imagética evocativa, em favor dos ritmos mais abruptos, e de uma concisão que mais nomeia e define do que evoca."47 Esta diferença é atribuída, na sua perspectiva, ao exemplo de João Cabral de Melo Neto, o que não impossibilita a existência de ecos de outras vozes significativas. Assinalemos, neste contexto, que certas imagens, como a violência, a presença da água e do luar num cenário de morte, podem motivar-nos também a estabelecer uma aproximação a alguns arquétipos do Romancero Gitano de Federico García Lorca, autor que traduziu e que surge por vezes associado a poemas, pelo que a filiação cabralina, neste sentido, poderá não ser tão unívoca48. O estilo, porém, pela descontinuidade aparente que é perceptível através de um confronto com as obras anteriores, levou Clara Rocha a considerá-lo "um pastiche sobre o estilo inconfundível de Melo Neto", ao mesmo tempo que "celebra a poesia da evidência e da exactidão do autor de Psicologia da Composição". Esta ideia parece ser corroborada pelo primeira estrofe da "Dedicatória da segunda edição...", onde é referido com clareza que a génese da obra parte não só do reconto de uma história ouvida mas como exercício formal que lhe permita "ver melhor / A peculiar disciplina / De rente e justa agudeza". A obra nasceria, deste modo, sob o duplo signo do interesse suscitado por uma história "de grande estranheza" e do interesse empenhado em compreender uma poética que, em alguns aspectos, se aproxima da sua, na visão imanente e no apuro formal que ambos defendem e que procuramos explicitar nos pontos anteriores.
4. Entre a publicação de "O Cristo Cigano"(1961) e "Educação pela Pedra"(1966) distam apenas cinco anos. O diálogo entre os dois poetas não se resumiu, como observámos, ao mútuo elogio: os dois autores encontram-se, afinal, na mineralidade imposta à sua poesia, nessa "tão exacta / Fidelidade à imanência" que nasce da observação do mundo em liberdade.
Notas
Bibliografia Activa | Bibliografia Passiva | Obras de Referência
dezembro, 2007
Francisco
Saraiva Fino é licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Estudos
Portugueses, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto em
1999. Presentemente, é mestrando em Criações Literárias Contemporâneas,
na Universidade de Évora, na área de especialização de Teoria da Criação
Literária. Tem centrado os seus estudos no âmbito da Literatura Portuguesa,
sobretudo na poesia contemporânea. Desde a sua constituição (Junho
de 2001) é membro das Comissões de Espólio e de Edição da obra de
Daniel Faria, responsáveis pelo estudo e divulgação da obra deste
poeta. Tem alguns artigos e ensaios publicados em revistas e em suporte on line. Algumas publicações: Para
una Teoría de la Literatura Hispanoamericana,
de Roberto Fernández Retamar, in "Humanística e Teologia",
Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa (Porto),
ano 18 — Janeiro/Abril de 1997, pág. 200; Na
Fábrica do Mito — Algumas notas sobre a estoria de D. Afonso I, in Revista da
Faculdade de Letras, "Línguas e Literaturas", Porto, XVI,
1999, pp. 231-245; Como
se Acordasse a Mão que Semeia — Das Obras Poéticas de Daniel Faria, in Apeadeiro — revista
de atitudes literária,
dir. de Valter Hugo Mãe e de Jorge Reis-Sá, nºs 4/5, Vila Nova de
Famalicão, Quasi Edições, 2004.
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