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Leituras sobre egon schiele. auto-retrato de dupla encarnação,
de valter hugo mãe
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1. Da actualidade do Expressionismo: uma introdução
"É este o minério do tempo, a pura
antracite ardendo à luz dos castiçais,
as faúlhas acesas na erma lareira,
na fuligem das paredes ídolos de barro
movimentando os seus dedos erosivos,
consumindo a memória e a névoa,
sirgo do sono, as palavras emergindo,
signos incandescentes no ar nocturno.
Ontem visitando o pântano e o silêncio
das águas, os tímpanos desabrochando
em flor, o gás penetrando os pulmões
e a morte do desejo ao entardecer."
A leitura deste poema de Paulo Teixeira, intitulado significativamente "Da Actualidade do Expressionismo"1, coloca-nos perante a reflexão sobre a permanência na poesia portuguesa contemporânea de certas imagens provenientes de correntes poéticas e artísticas anteriores, cuja assimilação e expressão correspondeu a diferentes níveis de desempenho de autor para autor. A memória do poema tende, como é sabido, a comportar nos seus interstícios a referencialidade imagética de uma certa tradição expressiva que se vai reactualizando de acordo com a cosmovisão própria de cada escritor, a qual transcende qualquer zeitgeist de uma época, ainda que sem a ignorar por completo. Aceitando o termo "pós-moderno" para a caracterização de uma época de releitura artística do passado2, muitas vezes assumidamente crítica, poderemos entendê-lo, como o fez Calinescu3, enquanto um período especialmente vocacionado para a polifonia dialogal entre diferentes formas de arte, a qual ultrapassa nexos temporais e formas artísticas. Esta questão parece retomar as teses de Walter Benjamin sobre as relações entre a história e o progresso, no sentido de considerar possível a retoma do passado através do Agora, pelo que a arte pode ser concebida, de acordo com esta perspectiva, como essa revisitação de um certo passado no qual o presente se reconhece4. O "minério do tempo" referido por Paulo Teixeira no poema inicial revelar-se-ia, deste modo, enquanto a revisitação de uma tradição artística através da sua contínua actualização e permanência no "tempo de Agora" benjaminiano, pelo que a "actualidade do Expressionismo", ainda sem nos determos no significado histórico deste movimento artístico, parece fazer assim todo o sentido.
O exemplo de Paulo Teixeira poderá estender-se a outros autores, nomeadamente aos que foram agrupados de acordo com as designações genéricas e, por conseguinte, nem sempre consensuais, de "Novíssima Poesia Portuguesa", "Geração de 90" ou, como ironicamente a considerou Manuel de Freitas, a geração dos "Poetas sem Qualidades", termo surgido num volume antológico que o mesmo organizou5. A propósito deste autor, a ensaísta Rosa Maria Martelo estabelece, entre outros aspectos, uma relação entre a sua poética e uma das dimensões estéticas da modernidade contemporânea, baseada no que define enquanto "a descrição baudelairiana da perda da auréola pelo poeta no meio da velocidade (e da voracidade urbana)"6. Ao reivindicar o papel essencial de Baudelaire na configuração do poeta "sem aura" (na interpretação benjaminiana, entendida no seu desejo de mergulho "na circunstancialidade do presente"), não lhe é ignorada, de igual forma, a sua importância na valorização da "beleza particular do mal, o belo no horrível"7, traduzida em obras como "O Spleen de Paris" ou "As Flores do Mal". Esta nova percepção estética da modernidade decorreria, neste contexto, da procura da beleza oculta nos mais horríveis contrastes sociais, aproximação em que Matei Calinescu associa o trabalho do artista ao do alquimista8, e da alienação do poeta em relação à sociedade da sua época, que encontrou em Baudelaire a sua mais perfeita tradução no dandy. O decadentismo tenderá a acentuar o fosso cada vez mais proeminente entre o escritor e a sociedade, entre modernidade estética e a modernidade burguesa opressora, através do auto-reconhecimento da sua própria alienação estética e moral, contribuindo para um distanciamento progressivo que se confundirá com a exploração das potencialidades expressivas oferecidas pela linguagem, desde Baudelaire desvinculada de um realismo excessivo. Como afirmou sobre o artista, "ele interessa-se pelo mundo inteiro (...) o artista vive muito pouco, ou não vive sequer, no mundo moral e político"9. Esta marginalização progressiva do artista em relação ao mundo confunde-se, assim, com a opressão direccionada ao seu ímpeto criativo; com Rimbaud, na sequência de Baudelaire, este encontrará na imaginação e na invenção de uma linguagem própria e obscura o refúgio e forma de expressão privilegiados do poète maudit, tópicos implicados posteriormente em outros itinerários artísticos, como teremos a ocasião de observar numa das vertentes do Expressionismo. Esta filiação, no que diz respeito à literatura portuguesa contemporânea, encontrará um caso significativo na obra poética de Al Berto, na qual a escrita acompanha de forma particular a vertigem do sujeito no caminho da sua dissolução10.
Esta tradição poética estará presente na produção poliédrica de alguns dos denominados "poetas sem qualidades", dos quais pretendemos destacar valter hugo mãe11 que convocamos neste estudo a propósito da referência num dos seus primeiros trabalhos poéticos ao pintor austríaco Egon Schiele (1890-1918). De facto, ao percorrermos "egon schiele — auto-retrato de dupla encarnação", obra com a qual alcançou um importante prémio literário, mais do que nos depararmos com o que poderíamos entender como uma homenagem a um artista importante no panorama pictórico do Expressionismo vienense, acabamos por verificar a sua presença enquanto metáfora dialogante entre dois artistas e duas produções específicas distintas, assim como a rede de conexões que ambos partilham no âmbito da diferença permitida entre duas linguagens artísticas perspectivadas em contextos diversos. Numa visão de pendor semioticista, Luís Carmelo defende para a poesia portuguesa mais recente a existência de registos próximos do que, partindo da teorização de Renato de Fusco, define como um "hibridismo criativo"12, um tipo de codificação inter-semiótica decorrente do estabelecimento por parte do historiador de arte referido de seis grandes tendências da imagem no campo da arte, dos quais pretendemos, para este estudo, destacar a que o mesmo entendeu como "a linha de expressão"13. Nela encontramos valorizada, para o presente panorama artístico e literário, o Expressionismo e, como também acrescenta, "personagens isoladas", como Schiele ou Kokoschka, que são na actualidade convocadas e relidas à luz de um novo modo de fazer poético que, como verificamos, não abdica do "minério do tempo", cuja depuração e alquimia depende do artista contemporâneo que deles se apropria com vista à produção dos seus próprios artefactos. Em causa, na verdade, parece estar a questão da percepção, assim como a própria etimologia da noção de aesthesis (sensação); Fernando Guimarães defende o primeiro termo apontado como a noção central em torno de uma das grandes narrativas modernas, ao salientar a sua natureza metafórica e ideal, a qual visa a representação14. A percepção de uma obra de arte pode, por sua vez, gerar outras produções que implicarão necessariamente novas significações: ao reler a tradição expressionista através de Egon Schiele, valter hugo mãe procederá a uma leitura metafórica da qual aproveitará certos temas, a partir dos quais formulará o seu próprio texto. O que se afigura interessante nesta abordagem particular é a escolha do âmbito da arte expressionista enquanto representação patética do sujeito em crise (temática que, como vemos, assume a tradição de Rimbaud e de Baudelaire), como se ela, em si mesma, veiculasse as condições ideais para a formulação catártica que transcende a sua poesia, correspondendo no essencial à definição abrangente de Herbert Read sobre a arte expressionista: "aquela que liberta qualquer pressão íntima, alguma necessidade interna"15.
A selecção de Egon Schiele como ícone desta forma moderna de entender o sujeito surgirá, como veremos em seguida, matizada de acordo com a referencialidade explícita a quadros e a episódios biográficos que servirão de metáfora para a experiência de catarse que o poeta atribui aos seus versos; um diálogo patético e poético entre pintura e verso que acompanharemos e cujo itinerário tentaremos compreender.
2. egon schiele, auto-retrato de dupla encarnação: percursos
Uma leitura pelos títulos dos vários poemas da obra de valter hugo mãe16 que pretendemos analisar confronta-nos com a certeza, de resto já enunciada no título principal, da importância do auto-retrato na pintura de Egon Schiele. Seguindo uma tradição que tem as suas raízes no período renascentista, o auto-retrato foi desde cedo entendido como uma forma privilegiada da descoberta da identidade do artista, tópico que o pintor austríaco desenvolveu de forma vertiginosa se tivermos em consideração a abundância de verdadeiras séries onde se auto-representa em diferentes posturas corporais. Roger Cardinal, a propósito do que entende enquanto o "projecto expressionista", salienta a forma como neste movimento o artista é visto como um ser com uma vocação exemplar para o sofrimento, o qual nasce da desorientação e alienação perante um mundo opressivo e estranho, indicando Schiele ou Van Gogh como exemplos de artistas representativos desta tensão interior; como sintetizou, "os torsos macilentos e os membros retorcidos de alguns nus de Schiele sugerem uma preocupação em revelar impulsos libidinosos, mas seu propósito é, sobretudo, designar o corpo como expressão do lugar do sofrimento"17. De forma similar, assim o parece entender igualmente valter hugo mãe, num curto poema que em seguida transcrevemos, onde o corpo é identificado com a voz enquanto veículo privilegiado de expressão:
"auto-retrato de schiele. corpo
da voz. objecto do meu
morto.
a voz é um objecto do corpo,
assim como a morte voz do
objecto morto" (pág. 16)
Noutro curto poema, intitulado "ego-cénico", num claro jogo referencial entre o nome do artista e a sua vertente narcísica, à qual se acrescenta no segundo membro a teatralidade da encenação do eu que será confirmada na imagem do receptor envolvido no seu acto criativo:
auto-retrato
com que meço a minha vida.
pintei mil homens a olhar
para mim." (pág. 27)
Esta questão da auto-representação foi explorada por Schiele no sentido de uma partilha comunicativa do sofrimento interior através da exploração obsessiva do corpo nu, que se torna desta forma a voz privilegiada das inquietações do artista. Tomando a questão do espelho como manifestação de um certo tipo de alteridade, tópico tematizado na modernidade poética através da figura do duplo, o pintor assume nos seus quadros a vontade ligada ao seu estilhaçamento, conseguida, entre outros artifícios, através da mutilação dos corpos (recordemos o quadro Nu Sentado, de 1910*) e da deslocação de perspectivas na representação da figura humana. Num estudo sobre a obra do pintor austríaco, Reinhard Steiner aponta para uma inequívoca intencionalidade na «invenção» de novos ângulos e perspectivas, facto que conduziu a que raramente os corpos sejam vistos de frente ou mesmo no meio do quadro18. Por outro lado, a distribuição das cores no quadro é por vezes feita a pinceladas grossas, esbatendo tonalidades escuras e criando figuras contorcidas e grotescas. Como exemplo, podemos apontar o seu Auto-retrato Nu, também de 1910*, no qual a boca aberta onde se adivinha o vazio corresponde à ausência dos traços correspondentes ao preenchimento dos olhos, conjunto este que complementa a geometrização da postura dos braços e a perspectiva desmesurada do membro direito, do qual pende uma mão cadavérica, característica, de resto, presente em outros quadros19. A dimensão patética é, no entanto, estranhamente contrariada por essa espécie de aura luminosa que envolve a figura, uma luz branca que irradia de um corpo violentamente contorcido e que parece clamar para si o direito a uma dimensão estética própria, à singularidade que associaremos ao conceito proposto por Adorno da dissonância, por este definido enquanto o "termo técnico para a recepção através da arte daquilo que tanto a estética como a ingenuidade chamam feio"20. Na obra de Egon Schiele, esta acepção particular da dissonância conjuga-se com o enfrentamento patético do eu através da invenção de um outro, que mais não será do que o desdobramento do seu ego21, de uma personagem que assume nos seus auto-retratos a sua nudez crua e terrivelmente sexualizada, fruto da busca consciente de uma forma de expressão particular na multiplicidade de imagens desse mesmo alter ego. Dois exemplos ilustrativos poderão ser encontrados em "O Profeta (Auto-Retrato Duplo)", de 1911*, e posteriormente em "Auto-Retrato Duplo", de 1915*, estendendo-se a outras formas artísticas como uma fotografia em exposição dupla*, também deste último ano, ambas de um período em que a experimentação tomando por base a multiplicidade das imagens do eu assume particular ênfase. A partir deste contexto, parece-nos pertinente estabelecer uma aproximação contemporânea aos trabalhos fotográficos de Jorge Molder, onde a temática da duplicidade é desenvolvida através da utilização do seu próprio corpo numa série de auto-retratos, ainda que, na opinião de Delfim Sardo, "as fotografias em que Jorge Molder usa o seu próprio corpo — ou o seu rosto — deixam de ser auto-retratos, porque a figura que neles surge não resulta de nenhuma busca da autenticidade no interior do seu autor, mas, pelo contrário, são figuras ficcionais"22
Por outro lado, a erotização do corpo conduz-nos aos retratos de nus femininos, interpretados em "menina dormindo (estudo a partir de gerti schiele)" como uma experiência estética luminosa através do ponto de vista do pintor:
"é deus quem vem lá
desvairado de amor por mim
quando termino este singelo
desenho." (pág. 25)
Gerti Schiele, irmã do pintor, tinha-se tornado o seu modelo privilegiado entre 1909 e 1910, aparecendo em vários retratos famosos como "Rapariga Nua de Braços Cruzados", de 1910*; é conhecida, no entanto, a sua obsessão por retratar corpos de raparigas adolescentes, que serviam o seu intuito universal de, conforme declarou, "pintar a luz que irradia dos corpos"23, o que, no entanto, não o livrou de ser acusado de rapto e violação sexual de menores em 1912. Embora tenha sido apenas condenado a três dias de detenção (período que compensava as três semanas que passou na prisão de Neulengbach enquanto aguardava a sentença), apenas com a acusação de divulgação de desenhos imorais, teve tempo de pintar uma série de aguarelas onde exprimiu, mais do que a angústia derivada da ausência de liberdade pessoal, a opressão real à liberdade do artista perante a sua criação. valter hugo mãe faz uma utilização deliberada dos títulos de alguns destes quadros e de certos pormenores deste episódio biográfico com o objectivo de compor uma sequência significativa que parece exprimir o itinerário catártico a que foi sujeito, desde "suspeito de raptar uma menor" (pág. 12), a "o discurso maricas de egon preso", composição onde a privação de liberdade é denunciada através da representação do espaço repressivo:
"bico de água na linha
dos olhos, do horizonte
meu semblante carregado
semicerrando a imagem. ruga.
insisto-a no sopé dos calos.
o assobio e o vento bem por
dentro dos ossos. infiel
estrutura.
na prisão as paredes são
atiçadas para nos esmagar. a
cabeça e o silêncio
vieram para nos deixar
morrer." (pág. 14)
Esta via crucis do artista privado da sua liberdade criativa, que prossegue nos poemas com a citação de títulos de quadros como "oprimir o artista é um crime, é assassinar a vida no ovo" (pág. 24) e "de boa vontade suportarei com paciência o meu mal em nome da arte e daqueles que amo" (pág. 26), não poderá ser entendido como um tópico exclusivo da pintura e poesia expressionistas, se tivermos em consideração os aspectos referidos no primeiro ponto deste trabalho. Como um dos mais recentes exemplos deste interesse apontaremos uma obra de Vasco Gato, significativamente intitulada "A Paixão e Prisão de Egon Schiele", da qual em seguida transcrevemos um trecho que facilmente poderíamos confrontar com o ofício terrível do artista na exploração dissonante dos corpos e, por extensão, de si mesmo e do seu processo criativo :
"Sou um pintor. Trago sangue para os vossos olhos. Tenho artérias que se descosem e me cospem dentro de mim mesmo. Preciso de muita paciência, de todas as mulheres do mundo. Durmo sobre a cama profana da minha escuridão. Contagio e deixo-me contagiar pela peste dos bairros pequenos. Não suporto muita luz, não sei o que é uma avenida. Esquinas, sou qualquer coisa que o espanto torce. Sou viciado no álcool dos corpos que se difundem. Bebo das vossas bocas o que não pode ser visto. Pinto para me esquecer do que não pode ser visto. Pinto com os materiais clandestinos do meu amor. Não projecto nada na minha tela. Eu sou a tela. Eu sou a luta das cores por um diafragma de beleza. Sou um pintor. Mereço morrer como um pintor. Não mereço que me prendam. Mereço todas as minhas paixões. Mereço todas as minhas paixões."24
Regressando a valter hugo mãe, a exploração verbal do corpo dissonante seria considerada com maior veemência em livros posteriores, como "a cobrição das filhas"25, reservando para a obra em análise algumas considerações igualmente significativas. Um exemplo será o das alusões à esposa do artista, Edith Schiele, que se tornou o seu principal modelo desde 1915, onde esta visão se aproxima da dimensão erótica e da liberdade de expressão de que o grito constitui uma referência sugestiva:
"perante edith nua
qualquer artista assassina
o seu ego.
grito como repicam os sinos
para que repiquem por mim." (pág.18)
Num outro registro, cujo título é dominado pela função referencial — "o rachel’s trio homenageou egon num disco magnífico"26 — , a erotização do corpo é levemente atenuada pela experiência da interpretação de um quadro de Edith vestida (as riscas do vestuário fazem-nos reportar a dois quadros possíveis, pintados entre 1915/1916)*, em que, tal como as riscas de um vestido, três linguagens artísticas surgem combinadas na exaltação final do corpo feminino:
"explico-te o quadro
tu a medir os meus erros
com o franzir do teu sobrolho
— e quantas vezes os pesadelos
à noite — edith enfiada num
vestido às riscas e o rachel’s trio
a confundir semibreves com
estes pequenos mamilos." (pág. 10)
No poema "auto-retrato com cotovelo direito levantado"*, como exemplo, a referência explícita ao quadro ultrapassa a pura alusão ecfrástica27 como no poema anterior para o submeter a uma interpretação pessoal que, mais uma vez, decorre da perspectiva do receptor:
"passou batôn nos lábios como um
interruptor que lhe acendeu
a boca
mas depois
não disse nada." (pág.13)
No poema "deitado com o cotovelo esquerdo levantado", por outro lado, como num jogo antitético com o título do poema anterior, o sujeito de enunciação enquanto receptor introduz a reflexão sobre o tempo sob a forma de uma dedicatória e através da reiteração de marcadores temporais que surgem ao serviço do tópico da fugacidade, os quais serão retomados em outros momentos da obra:
"agora vim para cronometrar
cada traço dos teus desenhos. em
apenas uma hora, porque mo
soletraste a vida inteira,
escrevo este livro — metro de tempo,
propriedade muito alheia, centro
exilado. e não receies, sobre
tudo a morte, tua grande mentira,
nos segundos a estrear." (pág. 7)
Esta admiração centra-se na questão do traço de Schiele e a rapidez da sua execução, aspectos corroborados por testemunhos contemporâneos e pela observação do traço fino com que habitualmente contornava os corpos.28 Para o sujeito, o traço, na sua vertente comunicacional, ocupa o lugar privilegiado da expressão através do ruído, tradicionalmente oposto ao silêncio contemplativo, que não deixará, no entanto, de ser sistematicamente convocado:
"faz o silêncio ruído
para se esconder.
Abre a mão essa superfície falsa,
Até à voz de tinta fria que
Na mudez dos olhos
Se tem a gritar.
Não fora schiele e
Não haveria aquele traço
Que no domingo
Pela manhã
Me falou!
Schiele, traços que falam!" (pág. 9)
O ofício do pintor aproxima-se do ofício do poeta, pois, de acordo com Octavio Paz, em comum têm o poder da criação de imagens que transcendem os limites da linguagem que cada um explora29; assim, o traço é assumido por ambos como veículos expressivos, numa partilha de meios comunicativos que, na sua essência, pretendem separar-se da inércia angustiante imposta pelo silêncio, concedendo ao pathos interior uma voz. O traço surge, nesse sentido, como uma forma de lutar contra a ausência e de garantir o caminho da imortalidade, o verdadeiro tempo do artista:
"aos traços
traço a traço
envelheci
tenho os desenhos
servem para alcançar o
tempo do mundo
incrível idade do artista."
("o pintor sobre a relação da arte com a duração do artista", pág. 23)
Como referíramos em momento anterior, "a voz é um objecto do corpo / assim como a morte voz do / objecto morto." (pág. 16). Para o sujeito poético, Egon Schiele continua a veicular a sua palavra e deixar-se por ela transcender, do mesmo modo que, para si mesmo, a voz encerra o espaço eloquente da expressão da sua liberdade, como nos sugeriu, desde logo, no poema que inicia o livro:
vê esta garganta
espaço onde as minhas
exposições se fazem (pág. 5)
3. Conclusões
Antes de terminarmos este estudo, recuperamos os "signos incandescentes no ar nocturno" do poema inicial de Paulo Teixeira para os confrontarmos com a citação de Egon Schiele que abre o livro de Vasco Gato, anteriormente referido: "A imagem deve dar luz por ela própria, os corpos têm a sua própria luz que gastam na vida; ardem, não são iluminados"30. Num certo sentido, esta combustão interior da luz própria dos corpos é, como observamos, assinalada em algumas obras do pintor austríaco na demarcação da aura branca que rodeia os traços finos de algumas figuras, inclusivamente os auto-retratos do artista, como o "Auto-Retrato de 1910". A imagem de Egon Schiele e alguns tópicos do expressionismo continuam, na verdade, a emitir esta luz branca no imaginário poético contemporâneo, se tivermos em consideração não apenas os textos referidos mas a sua importância no percurso imagético de obras posteriores de valter hugo mãe, como "a cobrição das filhas", na qual Luís Adriano Carlos, no posfácio que redigiu para este livro, entende significativamente o alinhamento dos versos dispostos especularmente enquanto um modo de procurar "forçar fisicamente uma determinada indisposição da leitura, susceptível de se moldar a um tipo de escrita em que a delicadeza ecfrástica das imagens, à Egon Schiele, convive harmoniosamente com a volúpia expressionista da distorção, da caricatura e do grotesco"31. Em "egon schiele, auto-retrato de dupla encarnação" assistimos, afinal, ao esboço destes traços, na depuração do minério do tempo que permitiu a emersão de novas experiências literárias.
"posso apenas insinuar
este poema. trazê-lo
ao livro por uma
extrema sensibilidade que
poucos partilharão.
homenageio a boca do pintor,
lugar onde o silêncio se cobre." (pág. 31)
Bibliografia
Notas
* Reproduções e obras de arte referidas no texto e respectiva proveniência
novembro/dezembro, 2006
Francisco
Saraiva Fino
é licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Estudos
Portugueses, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto em
1999. Presentemente, é mestrando em Criações Literárias Contemporâneas,
na Universidade de Évora, na área de especialização de Teoria da Criação
Literária. Tem centrado os seus estudos no âmbito da Literatura Portuguesa,
sobretudo na poesia contemporânea. Desde a sua constituição (Junho
de 2001) é membro das Comissões de Espólio e de Edição da obra de
Daniel Faria, responsáveis pelo estudo e divulgação da obra deste
poeta. Tem alguns artigos e ensaios publicados em revistas e em suporte
on line. Algumas publicações: Para
una Teoría de la Literatura Hispanoamericana,
de Roberto Fernández Retamar, in "Humanística e Teologia",
Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa (Porto),
ano 18 - Janeiro/Abril de 1997, pág. 200; Na
Fábrica do Mito —
Algumas notas sobre a estoria de D. Afonso I,
in Revista da
Faculdade de Letras, "Línguas e Literaturas", Porto, XVI,
1999, pp. 231-245; Como
se Acordasse a Mão que Semeia —
Das Obras Poéticas de Daniel Faria,
in Apeadeiro —
revista
de atitudes literária,
dir. de Valter Hugo Mãe e de Jorge Reis-Sá, nºs 4/5, Vila Nova de
Famalicão, Quasi Edições, 2004.
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