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Moacir Amâncio
é
um biólogo da poesia. Exuma o corpo ainda
vivo.
Oferece a celebração da carne e da luz em
Óbvio (Travessa dos Editores, 123
páginas)
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Todo
poeta deixa um lembrete do seu próximo livro na obra anterior. É um
bilhete de despedida, uma carta, uma pista. Soa como educação, não é bom
ficar demais na casa dos outros, mas convém ao menos deixar um aviso ao
sair.
Não
que a poesia seja produto de investigador. Não é isso que quero dizer. A
poesia está muito próxima da obsessão. Uma imagem aparece, em um
vislumbre, e insiste em teimar e propor espantos. Moacir Amâncio, poeta
paulista, é o ouvinte da repetição. A repetição como intimidade,
envolvido em apanhar o máximo de variantes possíveis de seu repertório e
arquétipos. Acaba de lançar seu sexto livro de poemas, disposto em três
seções "Luz Acesa", "Arghvan" (em inglês) e "Óbvio" (que dá título ao
volume).
Voltando
um pouco mais atrás, em "Do Objeto útil", de 1992, Amâncio escreve: o
frasco guarda/a pergunta do sopro". Já em "Contar a Romã", de 2001, diz:
"na mão fechada a/paleta do sopro". Em "Óbvio", a metáfora ganha uma
outra denotação: "A cor: toda espessura, ar e sopro". Impressionante
observar que em cada imagem há uma história de imagens, em cada metáfora
existe uma história de metáforas do autor. Não se trata, portanto, de um
livro apenas, mas de uma coleção de espumas, assim como se colecionam
borboletas. Amâncio respeita a linguagem como carne e fotografa
sucessivamente sua desmoralização perante a luz, suas modulações e
velhice. É um biólogo da poesia, exuma o corpo ainda vivo. Fascinado em
esmiuçar o que muitos pensam que explicam pela evasão ou, de acordo com
o politicamente correto, pela sugestão. É detalhista, meticuloso,
palpável. Articula um abstracionismo com o impulso surrealista. É como
se fosse um Magritte convertido em Pollock. Estuda a composição
pictórica da claridade, remetendo à "Teoria das Cores", de Goethe. "A
fruta o garfo o apetite perdem vermelhos e roxos,/a intensidade
reversa".
O
título "Óbvio" resume o ato de exposição intensa do escritor a uma idéia
(que se fixa e não é fixa). Porque é o óbvio que não se enxerga, é o
óbvio que não se estuda, é o óbvio que se põe de lado. E é justamente o
óbvio que oferece as verdadeiras chances de autenticidade da língua. O
extraordinário estaria residindo, contraditoriamente, no lugar-comum. O
poeta tornaria comum o que é considerado incomum. Provoca uma espécie de
permanência do lado de fora do idioma. "por fora dos espelhos,
simplesmente//porque espelho será sempre plural./Antes e depois, abertos
aos leques". Amâncio é mais fiel ao devaneio, sonho acordado, do que a
reflexão, impossibilidade do sonho.
"A
mão pela primeira vez grafou
um círculo e por dentro firme
ponto.
Depois pensou o sol, amplo em esquadros,
ou a libertação do
curvo em ângulo.
O ponto se desmancha, abre a rua,
a escada pára
numa rosa, intenso
sobrepor conseqüências paralelas,
ação das
cores, a íngua em sua fala,
as propriedades únicas da sombra.
Mas
será contrapor qualquer nuance.
Os quadrados, retângulos,
esferas
confabulam o estar de estrelas, sala
dentro da sala, que
outra, reduzida,
relevo sobre azul, com entre espaços.
exercício
de mínima presença a
vírgula se coloca nesta frase".
Moacir
Amâncio explora perspectivas, desenha com a voz, a anunciar o espaço a
um cego ou ao desconhecido de si mesmo. Sugere suspeitas, que se
desdobram rapidamente em novos indícios, o que gera a descontinuidade e
um estado de pavor (não há como escolher, as ações têm o mesmo peso). No
poema acima, primeiro vinga-se um círculo; em segundo um sol; na
seqüência, há a libertação da curva e as esferas se transformam em um
"estar de estrelas". O traço automático acentua a espontaneidade do
pensamento, que se cumpre vacilante e indeciso, nunca afirmativo e
peremptório. Mas é um traço automático limpo do seu excesso, pensado,
trabalhado. Uma espontaneidade que vem da responsabilidade de falar até
onde se entende a fala. Quebra a facilidade, em uma torção, ao tensionar
a comunicação. Dificulta o acesso pré-fabricado do raciocínio. Uma das
grandezas do livro é que não recorre à paródia para desmontar clichês.
Não usa o vício para sair do vício.
É
incorrer em erro acreditar que essa poesia é dispersiva, sua
concentração é que provoca a dispersão. O leitor pode ser dispersivo,
não o poema, imbuído de um motor inclusivo, a recolher o insignificante
ao grandioso com igual generosidade. Toda etapa do livro é uma provação,
serve de passagem e iluminação para a seguinte.
A
subversão sintática, quando usada, atende ao apelo de estranhar para
entender mais. Sua biologia é a fenomenologia de dizer as coisas
enquanto elas duram. Não de dizer para que durem. Não deseja a
durabilidade, porém a interpretação da decomposição ou da formação.
Celebra o momento pois ele se perderá um instante depois e não é a
palavra que o salvará. A palavra faz o escritor sacrificar o momento
interessado em dizê-la. Sua capacidade de desregrar cenas, divorciar
expressões e reaglutinar logo adiante é fabulosa: "algumas luas cheias,
bastam fósforos". Poderia ser um haicai em função da intensidade da
carga, mas está encaixado em uma proposta de compaixão do homem à sua
própria precariedade. Ver ainda não é perceber, parece advertir o autor.
Sua atuação em diversas línguas e frentes ao elaborar aqui poemas em
inglês (como fez anteriormente em espanhol e hebraico) indica sua adesão
a um ato inaugural e original, da linguagem poética como corpo
intraduzível.
abril,
2005
Variações sobre o mesmo tema
Fabrício Carpinejar é autor de
As Solas do Sol (Rio de Janeiro, Bertrand Brasil,
1998), Um Terno de Pássaros ao Sul (São Paulo, Escrituras
Editora, 2000), Terceira Sede (São Paulo, Escrituras
Editora, 2001), Biografia de Uma Árvore (São Paulo,
Escrituras Editora, 2002), Caixa de Sapatos (São
Paulo, Companhia das Letras, 2003) e Cinco Marias
(Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2004). Mais em seu site, blogue e aqui.