Ricardo Lima é o melhor dos meus melhores amigos, que são poucos, mas ótimos. Risonho, discreto, fino, trazendo em si o próprio estilo dos versos sob controle que escreve, ele é atento e atencioso. Delicado com os outros, revela qualidades que tomo por muito favoráveis à manutenção da amizade, como o requinte e o bom senso. Nunca, em muitos anos de prazeroso convívio, discutimos sobre nada. Nunca nos arranhamos por um gesto que fosse, embora nossos encontros se repitam no esganiçar das metrópoles — por exemplo: da Liberdade ao Paraíso — e, sobretudo, nos lugares mais escondidos do mundo, onde ambos gostamos de conversar em silêncio durante horas a fio.

 

É a natureza, na visão de Cícero, mais que a necessidade ou carência, que faz nascer a amizade: Quapropter a natura mihividetur potius, quam ab indigentia orta amicitia... Outro dos autores antigos a escrever sobre o tema, o cristão primitivo Cassiano, faz distinção entre os sentimentos dos homens que eventualmente se associam por questões de mútuo interesse e uma outra forma depurada e superior de amizade, "a dileção verdadeira e indestrutível que cresce com a virtude e a perfeição geminadas dos amigos e cujo pacto, uma vez concluído, não se dissolve pela diversidade dos desejos nem pela luta das vontades contrárias".

 

Tanto o pagão quanto o cristão afiançam, em seus tratados, que a amizade depende da virtude, palavra exata para eles, embora hoje controversa pela variedade de sentidos que encerra. Creio que entre a minha pessoa e a de Ricardo Lima, que nos ligamos por simples simpatia, por essas tramas de coincidências gratuitas que a natureza impõe ou oferta e não se pode entender, estabeleceu-se desde cedo uma relação de respeito, limpa e sólida, por sempre termos praticado, cada qual de seu lado e à sua moda, uma virtude em comum: o jogo inútil da poesia, que não serve para nada, é fato, mas visa ao bem. E que ajuda a manter olhos abertos para os mistérios da vida.

 

"O dia todo em silêncio", primeiro verso do primeiro livro de Ricardo Lima, Primeiro segundo (1994), é o que tomo por sinal para supor que vigora em seu trabalho uma linha ascendente de indagação e constância. No segundo livro, Chave de ferrugem (1999), "não há rumor": mas prevalece "o azul de estar quieto", há uma "abelha silenciosa" e uma "dor esmagada". Já no terceiro, Cinza ensolarada (2003), o tema estóico do silêncio reaparece de modo ainda mais nítido. Nesse livro, "há língua que morreu", há um "triste mudo cenário", a "água cala", "silêncio e estilingues / cutucam / grandes árvores" e há "papel amassado / de seda e silêncio".

 

Consciente de um vozerio sem alma que perturba o mundo sensível, de barulhos irracionais que interferem com a música dos passarinhos e das gotas de sangue ou de roseira, sabedor do automatismo que jorra de "falas de adulto / tão ciladas", o poeta pretende, nesse mesmo terceiro livro, "tirar da alma / pitangas / e do pão / silêncio", assim como se põe à espera do momento de salvação provisória que o repouso lhe traz. Sendo seu modo de dizer sempre contido e conciso, nunca um verso se torna exclamação, nunca adquire um tom queixoso, embora ele deixe, neste passo, escapar a ânsia: "que demora / para a hora / do silêncio // para o corpo de silêncio / dessa noite".

 

Como notou Fábio Weintraub, na apresentação de Cinza ensolarada, "o extremo enxugamento sintático, a predominância de frases de tipo nominal, a adjetivação parcimoniosa, certo minimalismo construtivo são traços que distinguem a dicção seca e veloz de Ricardo".

 

Agora, em seu quarto livro, este Impuro silêncio, a mesma microscopia persiste na observação de objetos ou de pulsões afetivas. Com a meticulosa perícia de um artesão caprichoso, tudo foi reduzido à menor imagem possível, porque o poeta continua obcecado por uma "ânsia desmedida de mudez" e "o que queria / dizer / já falou / quieto". Se o mundo inteiro se contém num grão de areia, perscrutar seus detalhes e saboreá-lo em partículas, descrevendo-o de igual forma com economia de meios, é opção das mais sadias e lúcidas. No entanto, apesar desse rigor, desse obstinado e bem-lavrado estoicismo com a fala, na experiência deste livro, como na dos que a ele trouxeram, "há silêncio / que não cabe na boca". Daí então Ricardo Lima, para alegria dos muitos que admiramos seus versos, ser levado a incrustar lá no fim uma auspiciosa divisa, pequena e grande como os mundos de areia:

 

calar e cantar

sempre        

 

 
 
novembro/dezembro, 2006
 
 
 
 
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Impuro Silêncio (Poemas 2000 – 2004). Ricardo Lima. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2006
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Leonardo Fróes. Poeta conhecido por suas atividades na imprensa e como ensaísta e tradutor dos mais respeitados, já transpôs, para o português, livros de William Faulkner, George Eliot, Malcolm Lowry e Lawrence Ferlinghetti, entre outros. Montanhista e naturalista amador, traduziu também livros de especialistas em ciências da natureza, como o ornitólogo Helmut Sick e o mirmecólogo Edward O. Wilson. Algumas publicações, leia aqui.
 
 
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